A casa que habito

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Por muitos anos, e para alguns, o empreendimento de uma vida é ter um lugar físico que possa chamar de seu: é aquele pedaço de chão, aquele conjunto de blocos, pedras, concreto e cores, que juntos configuram o espaço denominado de: “casa”.

Mas, caminhando pela vida e pela existência, percebo que há moradas que fazem muito mais sentido e que nos dão o sentido exato deste “habitar”.
A “casa” toma assim um sentido figurado e pode ser metáfora do espirito que temos e carregamos como nosso.

O espirito que nos habita possui todas as características que são fundamentais para manter nossa existência.
Se bem fundado é forte: suporta intempéries, dificuldades, desastres, catástrofes, imprevistos.
É lugar de quietude quando tudo à volta parece vociferar e bradar.
É ponto de luz quando tudo parece sucumbir à escuridão e penumbra.
É lugar de paz quando tudo parece uma interminável batalha.

Mas afinal, muitos não se apercebem que este lugar tão precioso necessita ser cuidado.
O espaço onde nosso espírito habita é um empréstimo da existência. Apenas temos que zelar por ele. E ao partirmos, o entregamos: muito provavelmente do modo como vivemos, em boas ou más condições de acordo como escolhemos viver.
Assim, se bem administrada, a casa que habitamos vai se transformando em fortaleza e lugar de resistência. Lá o espírito crescerá, se fortificará, entenderá e completará aquela que é a sua missão.

A casa que habito já possui mais que meio século e nela me refugio quando tudo o que lhe é externo lhe contradiz, desrespeita, vocifera. Mas suas janelas se abrem e deixam entrar aqueles que a conseguem iluminar porque trazem com sua presença luz o calor que colore dias e que são capazes de acalentar mesmo em meio à tempestades.

Os anos passados trazem isso de bom: um sentido de permanência e imanência do que verdadeiramente importa e a compreensão de que o que verdadeiramente conta é o que está dentro. Lá não precisa que se acumulem bens extravagantes e materiais. Será lugar de conforto para quem deseja expansão da alma e alargamento do espírito.

A casa que habito está no dia de hoje em contemplação: comemora mais um ciclo de 365 dias de abrigo numa jornada de muitos dias e outros ciclos. Tem sido um lugar onde minha alma atraca e encontra segurança e paz. É ponto de pouso onde meu espírito se alarga.

Comemora comigo?

_______________
* Post atualizado de texto publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

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Por ruas e cruzamentos numa Pauliceia desvairada

Por: Eliana Rezende Bethancourt

A maior metrópole do Brasil é famosa por seus congestionamentos que em determinados dias chegam a mais 350 Km. Um fato que não é novo e que revela uma cidade pulsante, com um ritmo acelerado.
Em dias recentes um debate intenso se colocou quando o Prefeito da cidade decidiu para o bem da diminuição de acidentes reduzir a velocidade nas marginais. Em pouquíssimo tempo uma onda de descontentamento se fez.

Em verdade, a cidade sempre conviveu com muitos e graves acidentes. A maioria quando ainda eram usadas apenas carroças.

Viaje comigo pelo tempo e percorra esta Pauliceia, que desde sempre parecia aos seus moradores como completamente desvairada:

Tal como outras capitais do mundo em fins do século XIX e nos princípios do século XX, São Paulo também via sua vida urbana crescer e se modificar. Assistia atônita uma gama imensa de transformações nos hábitos de vida, modos de produção e formas de deslocamentos e adensamento populacional.

As ruas da Pauliceia encontrava por parte dos que a administravam problemas de todas as ordens e constantemente eram alvo de acalorados discursos realizados na Câmara Municipal ou mesmo na imprensa diária, onde os problemas urbanos ganhavam o tom de reivindicações populares ou mesmo de críticas aos poderes constituídos.

São Paulo convivia com um aumento indiscriminado de sua população. Tal aumento, originário desde os tempos logo após a abolição da escravatura – que lançou nas ruas escravos forros e libertos – ao mesmo tempo recebia nas mesmas ruas aqueles que iriam prosseguir realizando o trabalho dos escravos: que eram imigrantes. Os italianos chegaram inicialmente, seguidos de outras etnias e nacionalidades que chegavam em levas da Europa.

Com tantos circulando pelas ruas da cidade o burburinho aumentava, e o ritmo de vida se acelerava, gerando cada vez mais políticas que visavam regulamentar os espaços, gestos e modos de viver a urbanidade, eram denominados códigos de postura. Temas como o trânsito e o barulho na cidade eram tratados periodicamente, e em muitos casos, era patente a tentativa de inclusão do maior número possível de situações passíveis de punição e regulamentação.

Os sons que vinham desta vida urbana eram muitos e variados. Daí que os que estavam interessados em elencá-los tinham lá uma tarefa bem grande. A imprensa em geral colaborava neste sentido, e com certa frequência publicava artigos como o Dr. J. M. de Azevedo Marques, intitulado “A tranquilidade publica perante a Municipalidade”, onde o autor fazia menção a alguns destes sons da vida urbana:

(…) Há dias passados um illustre scientista extrangeiro queixava-se, pela imprensa, com razăo e escarneo, de ser S. Paulo uma cidade insupportavelmente barulhente alludindo ao ruido exaggerado dos bondes, dos automoveis, dos sinos, dos vendedores de jornaes, dos caixeiros de cafés, da cachorrada a uivar, dos pregoeiros ambulantes ensurdecendo, atordoando, causando mau humor, impedindo o repouso, socego, a saude e o trabalho.

(…) Que diferença contra nós, si compararmos isso com o que vimos nas cidades mais agitadas do velho mundo: Londres, Paris, Berlim Bruxelas, Lucerna, Genebra, Vichy (…), onde tudo se passa calmamente, em relativo silencio: os vehiculos năo incommodam pelos ruidos, os sinos săo raros e commedidos, os automoveis fazem “chic” em năo buzinar, ninguem grita, năo há guizos estridentes; e por isso, alli se pode conversar nas ruas, nos cafés, nos vehiculos, nos escriptorios, como se pode repousar, dormir, viver.
(…) Aqui impossível. (…)”[1]

Como sempre a comparação depreciativa tomava como parâmetro o Velho Continente (modelo buscado como referência de civilidade). O articulista ocupa-se de tecer as comparações procurando mostrar quão distante São Paulo estava de cidades e civilizações europeias.

Alguns destes sons vinham de diferentes meios de transporte, personagens urbanos, ambulantes e seus pregões, feitos para chamar atenção ao seu trabalho, ou mesmo de animais que trafegavam soltos por ruas, ruelas e avenidas.

Dentre os instrumentos mais comuns estavam entre outros: o uso de sinos, campainhas além da própria voz do mercador em portas de teatros, praças, e mesmo de porta em porta.

AV. XV de Novembro, São Paulo – década de 1920

O artigo prosseguia em sua minuciosa descrição e se tornava interessante quando se referindo ao trânsito, relacionava a convivência com determinados aspectos do comportamento urbano com a ausência de moral. Ou seja, quanto mais imoral e próximo da barbárie a desqualificação moral mais suscetível ao hábito de sons que perturbavam a ordem alheia. Observe:

“(…) Há é certo, uma parte do povo que se não incommoda com tudo isso; são os insensíveis, os pandegos, os endurecidos e, podiamos dizer, os idiotas, cujas funcções meramente physiologicas e impertubaveis predominam sempre sobre as moraes; comem e bebem sempre bem, dormem sempre bem, riem sempre bem, vagam sempre bem, passam sempre bem, como si o mundo fora só elles. Mas essa minoria de “homens-vegetaes” não merece dictar regras ou servir de padrão aos outros, ás senhoras, ás crianças, aos velhos, aos doentes, aos trabalhadores, aos estudiosos aos sensiveis, aos civilizados. (…)”[2] 

Ritmos e deslocamentos: a cidade veloz

Este mesmo trânsito, considerado caótico, era o centro de duras críticas e revelava um articulista preocupado. Referindo-se ao barulho e a forma descuidada que muitos veículos eram conduzidos e os resultados em números de acidentes, acrescentava:

“(…) A norma –  “é gritar e matar” – o bonde dispara, tocando os tympanos em selvagem Ze-Pereira, e vai esbarrando e esmagando, haja o que houver; o automovel faz a mesma cousa: e assim substitui-se a pericia pelo barulho, entendendo os heróes conductores que buzinando e badalando podem matar livres de culpa e pena. (…)”[3]

Os registros de acidentes de trânsito eram muitos e variados, incluindo batidas de automóveis em outros veículos, em postes ou em outras formas de obstáculos, bondes que se chocavam ou saíam dos trilhos, e atropelamentos – em geral, eram a maioria das ocorrências policiais. Saber sobre tais registros também nos fornecem ao mesmo tempo sobre esta cidade. Relava que havia um número crescente de pessoas circulando pelas ruas e experimentando uma nova forma de vivência: relacionada aos ritmos da velocidade e das deslocações pelo espaço social. Algo que até então não era possível sem as invenções como automóveis, bondes e trens. A convivência com a maior velocidade era algo intrigante, pois se de um lado favorecia deslocamentos para lugares impensáveis em curto espaço de tempo, por outro lado, mostrava que ainda era difícil lidar com atropelamentos, descidas acidentadas de bondes e mesmo dividir o espaço da rua com pedestres, cavalos, carroças, carros, bondes e condutores.

Bonde 41 saiu dos trilhos na rua Carandaí, esquina com a antiga rua Inhaúma, entrando no terreno da Sociedade Amigos da Casa Verde

Os relatos de tais ocorrências em vários casos transformavam-se em inquéritos policiais redigidos por delegados responsáveis nas diferentes circunscrições, tornava-se uma espécie de crônica policial sobre os problemas relacionados ao trânsito da cidade. Uma leitura atenta destes registros nos ajuda a perceber como esta cidade se movimentava e se relacionava com seu entorno, ao mesmo tempo que novos hábitos se instalavam.

Carlos Pimenta, Delegado da 5ª Circunscrição em São Paulo, é um destes que chamo de ‘cronistas policiais’. Sua escrita miúda, recheada de pequenos detalhes ajuda a dar cor e tom às impressões de uma autoridade sobre diferentes infrações ocorridas no espaço da cidade, tentando da melhor forma encontrar argumentos que viessem convencer de culpa ou absolvição as partes envolvidas. São relatos envolvendo crimes de diferentes ordens, em especial os que são relacionados a moral e bons costumes (inserem-se aí os crimes de vadiagem, prostituição, jogo, defloramentos, homicídios, entre outros) além claro, das infrações de trânsito.

Citando algumas destas infrações, o delegado Carlos Pimenta comenta sobre os atropelamentos e a forma considerada descuidada de motorneiros e passageiros conduzirem e se portarem nos veículos que transitavam pela cidade:

“(…) Trata este inquerito da eterna questão dos atropellamentos por vehiculos. Enquanto tivermos leis benignas para o caso, os taes senhores condutores, chaffeurs e cocheiros andarão sempre sem o necessario cuidado, á matroca, a catar as pernas de um pobre mortal, ou mandal-o sem demora para outro mundo (…)”[4]

No caso específico deste inquérito, Carlos Pimenta retomava a questão da ausência de uma lei de trânsito que viesse atender de perto a necessidade de punir eficientemente infratores perigosos. A tônica sobre as leis de trânsito era constante, e em sua fala mais de uma oportunidade retomava este tema, em especial em relação ao número elevado de acidentes envolvendo atropelamentos e/ou imprudência da parte de motorneiros, condutores, passageiros e pedestres.
São os casos, por exemplo, dos seguintes inquéritos:

1)      “(…) É um eterno problema a questão de desastre por automoveis e dia a dia os atropelamentos vão crescendo de modo assustador. Este inquérito trata de mais um, cuja victima é o menor Antonio de Toledo, com 6 annos de idade (…) O automovel que apanhou o menor tinha o nº 2950 e (…) o auto caminhava com marcha acelerada e com pharóes apagados (…)”[5]

2)     “(…) O veso antigo de todos os conductores de vehiculos, nesta Capital, andarem em vertiginosa carreira, procurando a morte para si e para os outros, é coisa que lhes póde tirar. São multados, processados, castigados, afinal dentro de nossas benignas leis e dos nossos liberrimos regulamentos. Mas a attração, a sympatia pela vertigem de corrêr é inevitável. (…) Devido a essa loucura, ou melhor, essa falta de prudencia, este inquerito registra um desastre desta natureza. No dia 10 do corrente, Segunda feira, ás 21 horas, o bonde de passageiros nº 423, na linha Tamandaré, tendo como conductor Abilio Pires, chapa nº 476 e como motorneiro Manoel de Moraes, chapa nº 877, ao fazer a curva da rua Castro Alves para entrar na rua acima referida, por imprudencia absoluta do alludido motorneiro, saltou dos trilhos, subindo no passeio, ficando as primeiras rodas sobre o mesmo (…)”[6]

Carlos Pimenta se coloca como mais um dos que criticavam as leis em vigência na capital e a forma considerada branda de tratamento dos infratores em geral. Em diferentes circunstâncias se refere às leis de trânsito como sendo benignas demais para serem respeitadas.

Além da velocidade e descuido dos condutores de veículos, os inquéritos nos fazem saber sobre a imprudência cometida pelos que trafegavam nas ruas. Um destes refere-se especificamente a distração e ao hábito sempre corrente de saltar dos bondes quando estes ainda estavam em movimento:

“(…) ás 21 horas, João Rebulhedo, que guiava o automovel nº 4016 pela Avenida Brigadeiro Luiz Antonio com destino á Avenida Paulista, seguia atraz de um bond da linha Paraizo quando, perto da rua Conselheiro Ramalho, o conductor Daniel Paes, que se achava de folga viajando neste bond, ao descer delle, em movimento, foi apanhar e ferir este conductor (…)

(…) João Rebulhedo explica em suas declarações que seguia o bond numa distancia de dois metros quando, inesperadamente, saltou delle esse conductor de folga. Sem tempo de evitar o desastre, pois Daniel, ao descer, lhe passou á frente – conseguiu ainda evitar sua morte, com a monobra rapida que fez. (…)”[7]

A prática de saltar dos bondes quando estes ainda estavam em movimento, além da travessia imprudente de pedestres acabaria por levar diferentes propostas à Câmara de vereadores de São Paulo sobre a aplicação de multas. Dentre alguns destes projetos temos, por exemplo:

“(…) Não existe, entre nós, a regulamentação do transito de pedestres. Essa falha é absurda, tanto quanto, no meu entender, essa regulamentação é o ponto de partida para uma boa legislação que venha resolver esse problema. (…) em Londres, (…) qualquer pessoa que atravessar uma rua em momento improprio, não pagará sómente multa; será presa immediatamente.E, si essa imprudencia der origem a um desastre, responderá pela parte dos dannos que provocar (…)”[8]

Abaixo uma imagem no Largo de São Bento, onde é nítido o movimento de subir e descer dos passageiros com os bondes em movimento. Além disso, transeuntes, carros e bondes compartilham o mesmo espaço exíguo, gerando aos pedestres inúmeras chances de atropelamentos quer por um quer por outro.

Bonde elétrico aberto no Largo de São Bento, na capital paulista, por volta de 1930, circulando na linha de São Caetano (criada em 1902 e extinta em 1942)

NO calor das discussões diferentes sugestões surgiam para um problema que não conseguiu no decorrer do tempo uma solução satisfatória.
Prova disso é que já estamos no século XXI e enfrentamos praticamente as mesmas questões, criticas e ponderações.

Destas ocorrências há diferentes registros fotográficos detalhados pela perícia técnica e interessante quanto ao fornecimento dos tipos de acidentes[9], ruas de maiores incidências, e assim por diante.
As imagens tomadas como documentação para incorporar o inquérito revelavam em detalhes a forma como o acidente havia ocorrido: em alguns casos, estas fotografias recebiam anotações em vermelho indicando a trajetória do veículo até encontrar o seu destino contra um poste, um muro ou mesmo outro veículo. As rotinas de acidentes acabaram por instituir uma prática de registros fotográficos para os acidentes que ocorriam pela cidade e revelam mais uma aplicação da fotografia para fins comprobatórios e jurídicos. 

Acidente com o bonde Casa Verde – Penha (55) na rua Japuiba com rua Anhauma (atual rua Antônio Lopes Marin com rua Dr. César Castiglioni Júnior

A lei determinava as velocidades máximas dos veículos motorizados.

Nos termos da lei: “(…) no perímetro central, em ruas e horas de grande transito, dez quilometros e nas demais, vinte quilometros, no perimetro urbano, trinta quilometros e, no suburbano, quarenta quilometros (…)”]10

As velocidades acima descritas procuravam através de uma regulamentação criar formas de diminuir os problemas ligados às altas velocidades dos carros, como batidas e atropelamentos muito correntes no período. Os espaços de regulação e tráfego colocaram à cidade muitos debates e o consenso nunca foi obtido. 

Distantes no tempo e próximos na dificuldade, temos a Prefeitura de São Paulo sempre alterando limites de velocidade nas marginais alegando exatamente os mesmos problemas de mais de um século atrás: excesso de velocidade, acidentes e atropelamentos. 

De fato, uma relação de poderes e fascínios entre homens, máquinas e leis. Nem sempre conseguem andar juntas e em benefícios de todos. 

*
Post extraído de minha Tese de Doutorado, intitulada: “Imagens de cidade : cliches em foco… São Paulo e Lisboa (1900-1928)“, defendida na UNICAMP, em 2002.

** Referências:
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade”. Anais do Museu Paulista [online]. 2007, vol.15, n.1, pp.115-186. ISSN 0101-4714. 

***Notas Bibliográficas:

[1] Marques, J. M. Azevedo. “A tranquillidade publica perante a Municipalidade”. In: Jornal O Commércio de S. Paulo, 29/04/1914.[2] Idem.
[3] Ibidem.
[4] Inquérito redigido por Carlos Pimenta, Delegado da 5ª Circunscrição de São Paulo, em 16.08.1922.
[5] Idem.
[6] Ibidem.
[7] Inquérito redigido por Armando Soares Cayuby, Delegado da 6ª circunscrição, em 08.02.1922
[8] Projecto nº 3, de 1924. Coleção Actos e Decretos do Municipio.
[9] Os registros fazem parte da coleção existente nos Arquivos do Museu do Crime, da Academia da Civil  de São Paulo.  
[10]  Lei nº 2.264, de 13 de Fevereiro de 1920. Coleção Actos e Decretos do Municipio.

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Contradições Natalinas

Por: Eliana Rezende Bethancourt

A humanidade é mesmo um mosaico de contradições que se manifestam sob vários aspectos.
Saio quase como que uma sobrevivente da que considero uma das maiores contradições ocidentais: o Natal!
O tempo tem passado e meu desconforto com esta data é inversamente proporcional a publicidade em seu entorno.
Não sei se pelo calor, congestionamentos, consumismo desenfreado, excessos de gestos, embriaguez, gulas e outras sandices guardo desta época profundo mal estar e péssimo humor.

Lia outro dia como o Natal é de fato, o maior exemplo de como se descumprir em apenas um dia um rosário de boas regras e condutas cristãs.

Vejamos:

Segundo o professor do Instituto de Psicologia da USP Cristian Dunker, que argumenta que o Natal vinculado ao consumo nega ponto a ponto os valores originários do cristianismo. Para os que não sabem quais são ou nem se lembra deles aí vão:

“o altruísmo, e não a cobiça com os presentes; a sobriedade, e não a ostentação de árvores, luzes e enfeites; a felicidade imaterial gerada pelo amor como renúncia, e não o prazer material; e a comunidade de iguais e fraternos diante do Senhor, e não o individualismo e a concorrência entre diferentes modalidades, mais ricas ou mais pobres de convivialidade

De minha parte vou ainda mais longe e explico as razões do meu mau humor com a data:

Andando pelas ruas, tanto nas vésperas como no próprio dia do evento, só o que vejo são pessoas vivendo seus excessos das formas mais primitivas: egocentrismo acentuado onde tudo o que é seu precisa ser o primeiro, o mais importante – as pessoas se acotovelam, espremem-se em estacionamentos, vias marginais, vagas… querem sempre o primeiro lugar, o melhor, e simplesmente estão dispostas a qualquer coisa para obter isso: buzinar, xingar, praguejar são a regra.

As pessoas em geral, estão sempre bêbadas ou inconvenientemente ‘altas’. Trafegam com garrafas e latas de cerveja como se fossem um troféu por seu ‘merecimento’ à suposta felicidade que tais drogas fornecem. Licitas ou ilícitas estão por todas as partes e lugares. Enfeitam selfies e são a medida usada para o quanto se está feliz e/ou se divertindo. Mas será mesmo que há tanta felicidade atrás de sorrisos plastificados  e engessados para exibir um selfie?
Teríamos de fato tantos e tão grandes motivos a festejar ensandecidamente? Não bastaria o sentido normal que simplesmente estar agradecido bastariam?

Estas mesmas pessoas nos invadem com seus gestos exacerbados, carros com alto volume, gritarias, fogos de artifício (o que me causa o maior dos estranhamentos, pois afinal, o que isso tem mesmo que ver mesmo com Natal?!), ligações de celular e WhatsApp onde todos, mesmo sem querer, acabam ouvindo tudo o que é dito deste e daquele outro lado. O comum é ouvirmos mensagens gravadas de todos os que estão à volta, e não bastasse isso podemos ouvir em tempo real e a plenos pulmões as respostas…
Que saudades da civilidade que o celular nos tirou!!!

Por seu turno, pais e filhos nos oferecem o espetáculo dos subornos natalinos: presentes e mimos são oferecidos em troca de suposto ‘bom comportamento’ e ‘merecimento’. É comum assistirmos crianças aos berros gritando que querem isso ou aquilo, mas que ao término do primeiro dia estão entediados com a maioria dos brinquedos que ganharam, e os encontramos em geral jogados e quebrados num canto qualquer. 

Saindo das ruas e indo para a intimidade as coisas não melhoraram muito. Se as reuniões estão ruins no início, ficam a beira no insustentável quando a noite avançou, a bebida aumentou e a comida esfriou: o assunto acaba, as alfinetadas começam e o tédio se instala.
Em geral, são aquelas reuniões onde seres que estão apartados há anos se encontram e precisam assim permanecer até que toda a comida ou bebida acabe. Não preciso terminar o roteiro: todos sabem onde ele vai dar. E não é novidade para ninguém como estas noites terminam.
As coisas podem ficar ainda pior, se o dia seguinte continuar a requentar conversas ao mesmo tempo em que se consume o que restou da noite anterior.

Mas ainda não fomos para aquele que substitui o aniversariante em protagonismo:
O pobre infeliz do Papai Noel tropical. Além de vestido com aquele pijama vermelho horroroso tem que aguentar toucas e botas que imitam peles…. num pais onde temos temperaturas, a esta altura, de quase 40 graus! Sem contar os que ainda precisam aguentar perucas, barbas falsas, e enchimentos para a barriga.

E ainda não é o fim do poço, pois há as decorações! Ah as decorações natalinas! Como conseguem reunir tudo o que há de mau gosto em motivos, cores e miniaturas?! Ficam piores quando tentam usar algodão para imitar neve ou papel picado para simular uma nevasca.
E as renas?! Como explicar o que é uma rena???? Aí temos a descontextualização somada ao mau gosto… simplesmente não aguento… 

Mas ainda há as músicas e jingles. Alguém é capaz de circular por um shopping e pelas ruas sem enlouquecer?!
É demais para mim….
Muito além do que sou capaz de suportar.

E o “amigo secreto”?!
Como esquecer?
Quem pode suportar tamanho desconforto?

Em casa, no trabalho, com amigos de clube ou esquina, a brincadeira atordoa pela inconveniência  e por revelar como se pode entrar em choque de uma só vez consumo, desinformação e empatia. Ninguém por mais tempo que permaneça com outro sabe adequar informações que possui sobre este ser que lhe coube num papelzinho com a devida empatia, sem destinar-lhe o vexame de receber aquilo que nada tem que ver com ele e ainda ter que agradecer!

Alguns dirão: “mas é voluntário, você entra porque quer”. Mas experimente tentar se esquivar e logo verá que a ‘opção’ não é tão democrática assim.
Atire a primeira pedra quem nunca sentiu vergonha alheia e constrangimento nestas horas. Anos se sucedem, e parece que os grupos não aprendem nada sobre seus ‘amigos’… 

O pior é que este tormento, em função do consumismo, tem chegado cada vez mais cedo e os temos de enfrentar já no final do mês de Outubro!

E como não poderia deixar de ser temos a ampla gama das pessoas: totalmente alienadas acham que o feriado é a desculpa perfeita para beber até cair e comer até vomitar! É um espetáculo tosco, pois mostra o quanto ainda a barbárie orbita os humanos e o quanto estamos próximos de instintos tão primitivos.

E aí o pobre Jesus nem é mencionado em lugar algum: não está nas rodas de conversa, não é lembrado ou citado em nada. Valores que deveriam ser relacionados à data passam longe de ser praticados.As pessoas avançam sobre a orgia de comidas e nem se lembram de que seria um bom momento agradecer, fazer uma prece. O alimento está ali apenas para a satisfação dos sentidos mais carnais. Passam longe de um sentido de conexão com o sagrado. Uma mesa posta em meio à uma selva teria a mesma reverência de leões e leopardos.

Fico imaginando que, se pudéssemos fazer uma nuvem de tags dos dias que antecedem o Natal e o próprio feriado teríamos como palavras principais e pela ordem as seguintes: cerveja, churrasco, peru, pernil, carne, panetone, presente, amigo secreto…. Jesus, amor, fé, compaixão, etc, etc… não apareceriam na lista.

Se duvidar, faça você mesmo as tags do seu feriado…  
Mas como para tudo o que é geral, existe as exceções, espero que você esteja entre aquela minoria que de fato tem nesta ocasião um bom motivo de estar em família, e usufruir este convívio de forma equilibrada, em sintonia de amor, paz, alegria e compaixão. Se assim for, é um grande felizardo: parabéns por integrar grupo tão seleto!

Aos demais só desejo que não meçam a felicidade desta data pela quantidade de álcool que consumiram ou pelo tamanho da fatura a ser paga em janeiro do cartão de crédito. Os dois casos só dão dor de cabeça e colaboram imensamente para o enriquecimento da indústria farmacêutica!

De minha parte, o conto de Natal que quereria ver era o que libertasse todos de suas algemas de supostas felicidades natalinas:

  • ninguém teria que dar ou receber presentes que não quisesse; 
  • ninguém teria que assistir espetáculos inconvenientes patrocinados por taxas alcoólicas beirando ao coma; 
  • aquele Papai Noel fake totalmente liberto daquele pijama vermelho, com seus gorros e toucas; 
  • que a comida fosse farta em mesas bem arrumadas o ano inteiro;
  • que encontrar toda a família e tirar disso prazer fosse a regra do ano inteiro e não um dia específico;
  • que brinquedos nunca fossem usados como moeda de troca e suborno por bom comportamento, ou uma forma velada de suprir culpas e abandonos;

Natal Pós Pandemia COVID19

Impossível não falar sobre o que tem sido o Natal pós-pandemia. Afinal, transcorridos quase dois anos após o princípio do distanciamento social, o ano de 2021 agregou outras experiências as já difíceis e inconciliáveis das reuniões familiares:

Mais de 600.000 pessoas não se sentaram à mesa para a ceia ou Ano Novo.

Mas ainda podemos encontrar coisas piores nos balanços pós-pandemia:
Foi hora de conhecermos os negacionistas e antivax de plantão, muitos deles partes de nossa família mais imediata.

O negacionismo expresso, que muitas vezes, chega a parecer ridículo e absurdo é uma realidade em muitos lares. Chegam-nos da forma mais tosca possível:
– há os que não se vacinam por considerar que um chip chinês o rastreará;
– ainda há os que afirmam que existe uma conspiração comunista que se alastra pelo mundo e cabe à patriotas refreá-la;
– há os que tomam a vacina, mas continuam tomando medicamentos ineficazes que servem apenas para sarna e vermes.
– descobrimos que estávamos cercados de fascistas e agora é impossível olhá-los como antes.

Talvez de tudo o que disse o pior e maior de todas as contrariedades que sinto é o compulsório da situação: a liberdade de simplesmente não ter que participar, ver. Somos invadidos de todos as formas e a sociedade que vivemos pratica durante todo este período a vigilância e o controle sobre nossas vontades, e até não querer resulta em alguma forma de controle ou de recriminação. A sociedade de consumo rapidamente se transforma em sociedade da vigilância e torna-se impositiva.
Cansativo…

Enfim…

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* Versão revisada e atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta
** Ilustração de Steve Cutts

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Leve sua alma para passear: dê-se tempo!

Por: Eliana Rezende Bethancourt

O tempo é sempre a grande preocupação de tudo e de todos.
Sempre temos a sensação de que nos escapa por entre os dedos, e por mais que aparentemente vivamos, menos nos sobra dele.

O tempo, logo se constata, não pode ser simplesmente medido por ponteiros e horas que insistem em correr através dos dias e anos em que nossa vida parece fatiada, retalhada, esmiuçada.
Como dar aos nossos dias tempo?
Como fazer com que, de tantos minutos infinitos, tenhamos de fato vida vivida e não tempo perdido, consumido, desperdiçado?

Fico aqui pensando que o melhor que podemos fazer, aos nossos corridos dias, é dar tempo e vida às nossas existências levando nossa alma para passear.

Mas como se passeia com a alma?
Como fazer isso se muitas vezes o corpo está aprisionado em congestionamentos, transportes, baias de trabalho, ou num sem número de compromissos?!

Dar descanso e passeio a alma pode significar destinar-nos tempo para coisas simples que dão a mente a possibilidade de expandir-se.
É este espaço que nos damos que pode favorecer ao alargamento do espirito e a expansão de nossa criatividade.

Por isso, encontre o tempo que muitas vezes é expropriado de nossas vontades. Encontre-o e o distribua por pequenas doses de prazer diário.
Descubra o que para você dá prazer aos sentidos.

Liberte-se de relógios, agendas, e celulares por alguns minutos ao dia. Seja seu maior e melhor companheiro. Caminhe simplesmente olhando o que há à sua volta. Perceba pessoas, animais, plantas, movimentos coletivos de pessoas, multidões ou meros indivíduos.

Quanto maior for o espaço social em que está, maiores serão os estímulos e possibilidades, trazendo com ele o desperdício pelo excesso. .
Concentre-se!
Não mergulhe na multidão para ser só mais um. Faça isso conscientemente e perceba-se nas suas diferenças.
Aprecie um bom café sentado em um cantinho interessante ou numa esplanada com uma vista que valha à pena. Aquiete-se! Coloque-se em descanso.
Simplesmente conecte-se com você.
Ouça o som do silêncio.
Alcance o som da sua alma.

Busque atividades simples que possam lhe dar prazer e alguma dose de endorfina: passeie ou brinque com seu cachorro, nade, corra, ande de bicicleta ou a pé….perceba os seres vivos em grande e pequena escala: olhe o céu, procure estrelas, constelações, planetas, encontre as imagens que as nuvens te mostram ao passar e passear suavemente sobre o céu.
Abaixe os olhos e veja as miniaturas que habitam o seu jardim: os trajetos de formigas, os pousos de borboletas, os pássaros nas árvores, as rãs em brejos…
Encontre a beleza de vidas aquáticas e as formas diversas que lhe apresentam de se mover, comunicar… seus coloridos e sons.

Procure uma esplanada, uma janela, uma vidraça…enquadre o mundo por ela e perca-se com um café ou uma taça de vinho.
A contemplação não exige praticamente nada. Apenas seu olhar e imaginação contemplativa.
As palavras são desnecessárias e a companhia chega a ser supérflua, pois nos tirará o sentido deste mergulho interno com nossa alma.

Alimente sua mente com leitura que lhe agrade, descubra uma nova receita, um drinque feito de sabores e cores diversas, um novo percurso (ao invés de sempre seguir pelos mesmos lugares e rotas).
Surpreenda-se levando sua mente para lugares em que nunca esteve. Disponibilize-se!
Fuja de algoritmos favoritando sempre as mesmas coisas.
Ouse ousar!

Cumprimente quem cruza seu caminho. Experimente um sorriso, vez por outra, para alguém que simplesmente lhe dirija o olhar. Descubra que se sorri também com os olhos.

Todos estes gestos não demandam tempo no sentido horário. Em geral, pouquíssimos minutos podem dar-lhe uma satisfação imensa e não terá subtraído nada do que sejam suas responsabilidades. Mas terá posto vida ao seu tempo.

Em pouco tempo, se dará conta que não precisa de dias específicos para se dar tempo e passear com sua alma.
Todos os dias serão dia de dar-se tempo e alargar-se.

___________________
* Post escrito revisto e atualizado a partir de publicação original do meu Blog, o Pensados a Tinta

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Quem precisa de Arquivo?

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Uma pergunta que chega parecer sem sentido. Afinal, quem precisa de arquivos? Para quê servem? 

Talvez devêssemos começar este artigo esclarecendo porque de sua importância. 

Para facilitar, poderíamos dizer a quem servem e porque.

Em primeiríssimo lugar: os arquivos servem às sociedades: presentes, passadas e futuras. 

Desde sua origem os arquivos são para uso social. Afinal, é através do acúmulo de seus registros que sabemos de onde viemos, como vivemos e para onde fomos.

Os registros guardados em arquivos cumprem funções probatórias e administrativas enquanto são utilizados, e transformam-se em verdadeiros detentores das memórias institucionais e históricas das pessoas, organizações e sociedades que os produziram.

Guardam o que se chama patrimônio das civilizações. Foi assim com sumérios, egípcios, gregos, romanos, e é assim até hoje. 

Dito de outra forma, para arquivos, NÃO EXISTE ‘ARQUIVO MORTO’!

O arquivo NUNCA pára de fornecer informações, e em vários casos, até mesmo sua ausência ou fragmentação revela detalhes fundamentais. Saber ler até nas ausências é uma virtude dos que sobre eles se debruçam.  

Sempre serão objeto de guarda, consulta e prova, e poderão servir à indivíduos, bem com às sociedades e civilizações inteiras.

Portadores de imensa capacidade de gerar conhecimento, são vozes do passado que se revelam ao bom questionador. Estabelecem pontes com o futuro por meio de suas notas pretéritas assentadas em um presente próximo ou distante.
Por isso, dizemos que os arquivos são fontes de pesquisa que se prestam à inúmeras áreas de conhecimento além, claro, da própria administração. São representantes da memória individual, tanto quanto da memória coletiva e administrativa de povos e nações, quando pensado de forma mais ampla, e de forma mais restrita representam organizações e instituições, que atuam em determinado ramo ou fração da sociedade.

Por seu caráter de prova os documentos de arquivo estão no rol de Direitos Humanos e do acesso à informação, já que quanto maior o acesso à informação, maiores serão as possibilidades de exercício da cidadania por meio de escolhas adequadas. 

Apesar disso, e de toda a sua importância, os arquivos são muito maltratados: descuidados, abandonados, relegados à inúmeras mostras de desrespeito como incêndios, vandalismos, roubos, enchentes, poeira, sujeira… ou mesmo confundidos com material de descarte ou almoxarifado. Mesmo em nossos dias é comum vermos arquivos e seus profissionais existirem em locais longe dos olhos: em subsolos, embaixo de escadas, em armazéns de despejo, quartos escuros, insalubres, caixas de papelão, estantes tortas, enferrujadas e sob ataques de roedores e insetos. Tudo ocorrendo com a anuência e ‘vista grossa’ de supostos gestores, que procuram manter a máxima de que “longe dos olhos, longe do coração”. Ou seja, se mantiver tudo bem escondido não há problema algum.   

Diante disso, é fundamental compreender que a responsabilidade de guarda arquivística é tarefa fundamental para TODA e QUALQUER instituição, já que existe legislação vigente para como, quando e como tais documentos necessitam ser guardados e as formas em que se deve dar acesso aos mesmos.

Falo isso, pois muitos acreditam que documentos digitais estão em melhores condições de guarda. Em verdade, isso é um ledo engano. Não é por não vermos o acúmulo de lixo digital que temos, que significa que estamos obedecendo corretamente critérios técnicos para esta área tão importante dentro de qualquer instituição. 

Os documentos de arquivo não são compostos apenas de papeis ou atos administrativos. Há uma gama imensa de outros suportes: como fotografias, portais, sites, audiovisuais que necessitam de especificações técnicas adequadas para guarda e acesso, e infelizmente o que temos em muitas instituições são um saco de gatos contendo de tudo. Mas, ao necessitar de UM DOCUMENTO, ninguém o consegue localizar. 

É fundamental que as instituições, sejam elas públicas, privadas ou mistas entendam definitivamente que informação boa é a que se consegue encontrar, e que NÃO SÃO ferramentas de GED que farão isso! Todo um trabalho que deve preceder a aquisição de ferramentas deve ser feito ANTES. 

A importância de um trabalho preliminar para a guarda documental é fundamental se o objetivo for dar acesso à informação contida nos diferentes documentos que compõe um arquivo. Além disso, estabelecer prazos para sua guarda, mesmo antes de os criar é uma forma eficiente de trazer racionalidade e transparência às ações administrativas, minimizando gastos desnecessários com guardas que excedam o tempo estabelecido em legislação vigente. Guardar mal e equivocadamente representa custos extras com mão-de-obra, tecnologia e outros recursos, espaço físico e digital para armazenamento. 

Resumindo: Gestão Documental começa muito antes de você produzir um documento, e portanto, não se encerra quando o coloca numa pasta, caixa ou o digitaliza. 

Aprender isso é a diferença entre fazer o que é correto e não se arrepender depois.  

Como a ER Consultoria pode ajudá-lo?
Na ER Consultoria possuímos metodologia própria para utilizar as informações contidas nos documentos em diferentes tipos de acervos e/ou arquivos para Projetos de Memória Institucional com vistas ao fortalecimento de Identidade e Cultura Organizacional em empresas de diferentes segmentos e suas áreas de atuação. Além de ofereceremos metodologias e técnicas adequadas para a Preservação e Conservação de Acervos e seus suportes físicos ou digitais.

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* Post escrito em comemoração ao Dia do Arquivista, comemorado todos os anos em 20 de Outubro

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Uma sociedade de performance

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Segundo diferentes teóricos a sociedade de princípios do século XXI deixou de ser disciplinar, como ocorria nos séculos XIX e XX e passou a ser de performance. O que significa dizer que exige-se das pessoas estar todo o tempo hiperconectadas, ser multitarefas, e estar em um estado permanente de euforia e felicidade. Substitui-se a chamada obediência pelo desempenho.
O sujeito neoliberal do desempenho é dominado pelo excesso de positividade (estímulos) em oposição à chamada negatividade.

Tudo que esteja fora disso é considerado indesejável, contraproducente.

As pessoas precisam, para serem consideradas bons profissionais, ser multitarefas. Ainda que isso signifique um grau de desatenção atroz. As pessoas quicam de um lado para o outro achando que com isso possam ter, segundo linguagem corporativa, um diferencial competitivo.

O mundo encheu-se de academias de ginástica, baias de trabalho, prédios envidraçados, vias rápidas, equipamentos eletrônicos, eletrodomésticos computadorizados. Temos cada vez mais tecnologia, em teoria, para que tenhamos mais tempo. Mas, mais tempo para quê?

O que fazemos cada vez mais com o tempo que nos é ‘pretensamente economizado’?

O tempo encurta e, em verdade, as pessoas estão sempre cansadas, carregadas de afazeres e atividades. Onde foi que colocamos nossas prioridades?!

Estranhamente ao invés de, tanta hiperatividade e desempenho gerar coisas novas, encontramos em geral, a repetição incessante do igual. Cada vez mais temos mais do mesmo!

Até mesmo os vocabulários corporativos giram em torno das palavras de sempre: motivação, resiliência, eficiência, competitividade, iniciativa, diferencial, sair de zonas de conforto, etc…etc…etc…uma quantidade sem fim de termos usados à exaustão pelos chamados “mentores”, “coaches” e os que se autodenominam como “iniciadores” deste caminho de sucesso individual. Surge um mercado ávido e muitas vezes, baseados na má fé de uns sobre a boa de fé de outros.

Em verdade, a desatenção, hiperatividade e hiperconexão servem de sombra para ampliar horizontes e descobertas que só podem ser alcançadas a partir do sossego da mente e a capacidade de observação e quietude do espírito. Daí que o que acaba contando são comportamentos que podem ser cifrados e contabilizados por dígitos. Valores essenciais deixam de ser cultivados e apreciados tanto individualmente quanto institucionalmente.
É só olhar no mundo corporativo: as cifras, as metas, os índices, os infográficos e os KPIs. Olhe nas academias, nos esportes, nas escolas, nos veículos perfilados lado a lado quando um farol se abre, nas filas em geral. Em todos os casos, se busca a prioridade, ser o primeiro, o mais rápido, o melhor.

De seres humanos temos paulatinamente nos transformado em “máquinas de desempenho” que estão todo o tempo medindo e sendo medidos a partir das cifras que conseguimos produzir.

Afinal, quem tem tempo para a observação? Para simplesmente aquietar-se? Ouvir-se? Ouvir?

Não bastasse tudo, o inicio do século XXI também nos trouxe o Home Office em meio a uma Pandemia! De repente, aquilo que já nos consumia e atormentava encontrou meios de piorar um pouco mais.
A casa e ambientes residenciais tiveram que se adaptar as rotinas de trabalho, e em muitos casos o sentido de adaptação veio em seu pleno sentido! Reuniões online e atividades domesticas sofrendo enquadramentos diversos e seus proprietários buscando formas de encontrar um meio de equilibrar tudo. Não faltaram os que começaram a considerar que na receita toda estava faltando espaço e boa dose de saúde mental.

Somado à tudo, as tecnologias que poderiam ser as libertadoras de tempo e espaço em nossas vidas tornaram-se durante todo o período pandêmico ferramentas potentes de controle e expropriação. Reuniões sequenciais, muitas vezes mais que uma em um mesmo horário. Por meio de plataformas digitais, diferentes profissionais, conheceram o que seja o “não-lugar” e levaram à máxima de otimização do tempo às ultimas consequências.
Zoom, Meet, e congêneres passaram a oferecer facilidade, mas sua fatura incluía a disponibilidade ampla, total e irrestrita. Manter-se conectado, atento e muitas vezes, bem humorados passou a ser a regra geral. O teletrabalho ofereceu o confronto com os “outros” e consigo próprio no espelho. Dia após dia olhar nossa face ao mesmo tempo em nossos pensamentos povoam nossas mentes passou a ser uma regra. Questões de autoimagem passaram a ser permanentes, intimidades passaram muitas vezes a ser desvendadas, espaços invadidos. As fronteiras antes físicas que demarcavam espaços de vivências e intimidades se perderam entre uma porta e outra e, de repente, o mundo entra com todas as suas cores, imagens e vozes para dentro de nossa casa.
A vista e o confronto com a própria imagem diariamente por horas a fio elevou as taxas de cirurgias de pequena correção: são pequenas rugas, bolsa nos olhos, botox, nariz, um contorno de lábios, manchas na pele, quedas de cabelo. O confronto externo leva a grandes embates e combates com camadas profundas de nosso ego. Descobrimos muitas vezes que a imagem no espelho não nos agrada. E isso gera um profundo, um grande cansaço…

Espaços comuns para pessoas que detinham apenas parte de nossa intimidade são retirados de nós, e as sociabilidades passam a sofrer mediações totalmente inusitadas até aquele momento. Eliminam-se rituais de convivência: um almoço, um café descontraído, uma caminhada com colegas. Tudo é subtraído de todos, seus locais de trabalho, salas, computadores, mesas, apertos de mão, abraços, sorrisos largos.
A busca de performance ainda presente exigia atenção, conexão, disciplina (sem demonstrar atrasos ou aparentar fadiga, desinteresse, etc). As janelas invisíveis nos colocavam nus, e ali tínhamos de permanecer até que nos fossem dadas a fala ou a autorização de saída.
O ambiente digital trazia inúmeros desafios e uma nova etiqueta social, que por vezes gerava ansiedade, desconforto, insegurança. Mas tais sentimentos não eram bem vindos nestes ambientes. Assim, buscar a melhor performance era imprescindível.

Mas ainda havia o espaço físico.

A convivência por tempos maiores com os membros imediatos das famílias trouxeram à tona problemas até então suplantados por agendas lotadas com compromissos de trabalho ou sempre com muita gente em volta. As agendas lotadas contemplavam todos: de pais aos filhos. Até as crianças possuíam em famílias mais abastadas e que foram em sua maioria contempladas com o Home Office tinham a agenda de escolas, cursos de inglês, balé, judô, natação. Não havia espaços de solicitação, pois todas as brechas de tempo eram ocupadas e os pais apenas administravam os intervalos, levando-os ao fim do dia para dormir. A pandemia e o estar em casa todos juntos e misturados trouxe para uma grande maioria um estresse imenso.
Em verdade, as pessoas lidavam pouco com o que lhes causava ansiedade ou tristeza porque não paravam para falar ou pensar sobre elas. Mas a partir do momento que o único local possível era estar em casa e próximo aos seus problemas mais secretos muitos começaram a se deprimir, com amplas dificuldades de lidar com tudo que vinha de dentro e do lado de fora o medo, o desemprego, políticas de governo insanas, mortes.
Para muitos foi simplesmente demais.

Cada vez mais e como imperativo de alta performance corpos cansados e sem ritmo são estimulados por diferentes fármacos: doping de todas as formas. Sempre foi assim: mentes entorpecidas e distantes para problemas próximos.
A indústria farmacológica sempre apostou nos mais diferentes fármacos: há para cansaço, sono, tristeza, ansiedade, inapetência. Mas com a Pandemia esta indústria aumentou ainda mais seus tentáculos e possibilidades para lutar contra algo que ainda não tinha uma clara definição. Desde sempre é papel desta indústria farmacêutica produzir de tudo para que tais corpos tenham a garantia de sua manutenção na linha produtiva e performática.
A adequação da indústria farmacêutica às demandas de performance pode ser facilmente medida pelo seu volume de produção. Tomemos como exemplo o ano do inicio da pandemia no Brasil:
O faturamento do mercado farmacêutico cresceu 13,6% de janeiro a outubro de 2020. Nesse período, o volume movimentado por esse mercado foi de R$ 113,02 bilhões, segundo dados da IQVIA, que auditora o setor farmacêutico. As vendas de suplementos, vitaminas, relaxantes e antidepressivos tiveram destaque nos primeiros dez meses do ano – e estão diretamente relacionadas ao momento vivido pela população por causa da pandemia de Covid-19.

Reproduzindo o filósofo coreano Byung-Chul Han, um dos representantes desta linha de pensamento, no seu ensaio “A Sociedade do Cansaço”:

“(…)”O cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço a sós, que isola e divide”, conclui o autor. “Esses cansaços são violência, porque destroem toda comunidade, toda proximidade, inclusive até a própria linguagem.”(…)

O interessante e segundo o autor, somos escravizados mas não por outros. É uma demanda interna que enxergamos como sendo necessária para a nossa atuação. É uma escravidão onde temos a chave. Em suas palavras: somos prisioneiros e vigiais.
Este sentido de exploração que obedece uma demanda interna é muito eficiente já que produz a falsa sensação de “liberdade”, de “escolha” e se casa muito bem com uma concepção do que seja o neoliberalismo na vida das pessoas e o chamado espírito “empreendedor”.
Se casa muito bem também com a concepção muitas vezes equivocada de que são seus erros que causam seus fracassos, quando nem a sempre a culpa pode ser toda atribuída a si próprio. Mas é a melhor resposta a se dar ao carcereiro de sua alma.

Em resumo:

Embriaguez química e digital: excitação e atordoamento de toda uma civilização.

A incapacidade de se lidar com a dor, o sofrimento, a angústia são afastadas à todo custo, quer por drogas vendidas em farmácias, quer pelas drogas das indústrias de bebidas. O alívio é buscado como forma tanto de manter-se em todas as tarefas, ou como forma de entorpecer os sentidos e simplesmente lidar com a demandas da existência.

Para onde vamos se respostas humanas não podem mais ser dadas, sem ser tomadas como uma patologia que precisa ser imediatamente medicada?

O sentido de urgência e pressa chega também com a forma como se lida com as emoções e as muletas buscadas são de todas às ordens. A oferta é grande e pode ser de remédios à drogas, ou ao mercado da fé. Aos que não se encaixam nestas fugas possíveis há o Burnout (nome da Síndrome do Esgotamento Profissional – um distúrbio emocional que possui como sintomas principais a exaustão, o estresse e profundo esgotamento físico).

É preciso compreender que a sociedade de performance transforma a todos que não se dão conta disso em peças de engrenagem. O seu uso extenuante apenas levará a sua reposição, e na atual conjuntura há muitas esperando sua vez de ser sucateada.
É preciso ter crítica e fazer perguntas a si próprio sobre a forma como conduz sua vida e seu trabalho.

Afinal, para onde vai com tanta pressa e tão cansado?

________________
* Versão revisada e atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

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Bibliografia:
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Giachini, Enio Paulo. 2. 2017. Vozes, Petrópolis: 128

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Nas ruas e nas redes: uma metodologia para análise da sociedade digital

Por: Eliana Rezende Bethancourt

A sociedade possui uma forma de estar e se comportar tanto nas ruas como em redes. Nossa sociedade se movimenta tanto física quanto digitalmente.

Registros fotográficos captam instantes e movimentos vividos nas ruas. Nas redes esta ‘fotografia’ de instantes pode ser observada com ferramentas de análise de redes.

A fotografia em toda sua história possui a característica de registrar e enfocar algo para nos chamar a atenção. O fotógrafo nos dirige o olhar para aquilo que lhe interessa e tudo o que está fora do enquadramento compõe o que chamamos extraquadro e se torna ausente. A fotografia, não representa nem a verdade de uma situação e representa sim um olhar sobre um vasto campo que engloba o objeto, mas que também exclui tudo o que compõe o extraquadro. É fruto de uma escolha pessoal e subjetiva do fotógrafo.

Da mesma forma que o registro fotográfico, as ferramentas de análise de redes que resultam em imagens instantâneas dos temas que provocam engajamento também trazem este foco, ao mesmo tempo que possuem, não um extraquadro, mas um contexto para suas conexões.

Há uma ampla gama de ferramentas que são utilizadas na coleta, análise, configuração dos dados e a elaboração de gráficos e imagens que fornecem a possibilidade de se verificar não apenas os graus de engajamento e interação, mas também a densidade destas ligações.

Dentre eles, temos, segundo SILVA, T. F. da .; RAMOS, T. C. da S. .; DAVID , H. M. S. L. .; VIEIRA, A. C. T. (2021):

– “(…) O Ucinet© – mais utilizado nos estudos que envolvem Análises de Redes Sociais (ARS) –, criado para auxiliar o analista de redes sociais no estudo das relações por meio de seus padrões. Permite caracterizar as ligações entre atores por meio de gráficos provenientes de uma matriz – conjunto de elementos formado por linhas e colunas, em que o analista de redes insere dados que representam as ligações dos atores na rede e pela aplicação de algoritmos específicos. Possibilita ainda o cálculo de medidas e a configuração das redes;
– O Netdraw©, que está integrado ao Ucinet© e é um programa para a representação de diagramas, possibilita a visualização de dados de redes sociais e permite visualizar relações múltiplas, distinguir atributos para os atores da rede, salvar os diagramas da rede como imagem, entre outros recursos;
– O Egonet©, que é uma ferramenta desenvolvida para analisar dados de redes egocêntricas. Auxilia o analista de redes na elaboração do questionário, na coleta de dados, na compilação de matrizes e na apresentação de análises estatísticas;
– O Pajek©, que tem a capacidade de representar, por gráficos, grandes redes, decompondo-as e identificando clusters (redes dentro de redes) ;
– E o Gephi©, considerado uma ferramenta “opensource” que auxilia na exploração e compreensão de dados a partir de gráficos. Ele permite que o usuário possa interagir com a representação, manipular as estruturas, formas e cores para revelar propriedades, por vezes ocultas, nos dados brutos. Pode ser utilizado para análise de redes egocêntricas ou completas. (…)”

Entenda toda esta teoria a partir de um exemplo prático:

Os movimentos ocorridos neste 7 de Setembro de 2021 entram para a história como sendo grandes movimentos, tanto nas ruas e praças, quanto na avenida larga da internet. Vimos o que aconteceu e o que não aconteceu nas ruas neste 7 de Setembro. Agora vamos tentar entender o que aconteceu nas redes e a forma como a sociedade se movimentou a partir das ferramentas disponíveis para análise delas.

Utilizarei grafos de Pedro Barciela que foram produzidos a partir de interações no Twitter.

Chamamos grafos estas imagens que parecem nuvens de palavras coloridas, que resultam de reunião e análise de grandes massas de dados.

Grafo de Pedro Barciela

Como forma de compreender estas imagens, tais grafos apresentam cores, que por sua vez se dividem em “grupos”. Para o caso da análise deste dia o cluster (que são as redes dentro de redes) representada pelo bolsonarismo é o laranja. Se colocarmos uma lupa sobre a quantidade de interações os dados revelam que menos de 18% dos usuários citaram as ‘manifestações’ ou mesmo ‘Bolsonaro’ em suas interações. As citações para o caso de redes utilizando hashtags são fundamentais para mensurarmos as interações. Esse baixo engajamento da análise deste grafo mostra que a mobilização digital #flopou (termo em linguagem digital para dizer que fracassou).

Mas o que poderia ser atribuído a isso? O que é definitivamente visível e perceptível é que a partir do esvaziamento da manifestação em Brasília com a presença de apenas 5% de manifestantes do que seria sua expectativa inicial. Fontes mais otimistas aguardavam algo acima de 1 milhão de manifestantes. Este volume, muito menor de pessoas, dificultou a criação de uma “enredo” sobre o que aconteceu. Isto deixou os que funcionavam como alimentadores das redes sem uma ‘ficção’ que engajasse seus pares e produzissem as tão desejadas interações que movimentariam as redes.

Apesar do grande tempo de preparação (quase 2 meses), com uso de recursos públicos e privados a decepção pelo que aconteceu em Brasília dificultou o engajamento na rede. Como a análise de redes ocorre em tempo real e instantâneo não é possível fazer análises sobre o que poderia ter acontecido nas ruas. Inúmeras versões surgem e só o Tempo mostrará. Para a análise das redes isto de fato não importa. Cabem a outras áreas de conhecimento investigar e propor caminhos interpretativos que se pautarão não apenas ao instante, mas aos eventos que circundam tais registros e estão no antes, durante e no depois. Colaboram com isso informações trazidas por apurações jornalísticas e, mais tarde e de forma bem mais robustas, por historiadores e cientistas sociais.

De outro lado, e não menos importante temos os outros clusters que representam o que pode se considerar a oposição ao bolsonarismo (representados pelas cores rosa e verde), e que se apresentam com uma interação muito maior. De novo, temos o engajamento de clusters diversos em oposição à jb. Não que TODOS pensem de forma idêntica, mas determinados pontos como a crise institucional e a luta por Democracia os une. O anti-bolsonarismo é diverso e possui muitas camadas de pensamentos, ideologias, objetivos e visões políticas e de mundo. Por isso, são uniões que ocorrem de forma pontual em resposta à situações específicas. Perceba que sempre há a figura de atores sociais que possuem um grande número de seguidores, e estes repercutem suas falas gerando o engajamento. Toda a movimentação se dá por posições e contraposições de ideias e posicionamentos. Alguns atores possuem interlocução com mais de um cluster exatamente por terem abordagens que engajam vários segmentos e pautas. E também é importante destacar que a aliança entre estes atores não se dá por conexão. Não estão conectados ou filiados politicamente, mas apresentam interesses no mesmo tema. Por isso dizemos que são alianças contranaturais. Estão unidos neste tema e aparecem neste instantâneo de momento.

Metodologia na Prática

Quando falamos em análise de redes não tomamos métricas usuais para outras coisas como raça, gênero, sexo, idade. Para analisá-las utilizamos critérios que tomam em conta a comunicação e interação entre ideias e comportamentos. O produto final destas análises funcionam como uma radiografia do social, e como toda radiografia há que se delimitar o quê efetivamente será mostrado.

A análise das redes nunca são abertas ao ponto de não se saber o que se quer mostrar. Como ocorre com todas as metodologias é preciso saber o quê e como será analisado. É preciso delimitar claramente quais serão as fronteiras do estudo.

O rigor metodológico da ARS implica duas condições: a escolha e a justificativa das relações que serão observadas e a delimitação do conjunto que será observado, ou seja, a especificação de fronteiras para a investigação. Para alcance da primeira, o pesquisador deve identificar os recursos cuja circulação é vital para o sistema, as produções, as trocas, os controles e as solidariedades que o caracterizam. A segunda condição pressupõe definir as fronteiras externas do ator coletivo ou do sistema de interdependência que se quer observar na estrutura relacional (Lazega & Higgins, 2014)“.

Por esta razão, vale frisar que as alianças contranaturais geradas pelo antibolsonarismo, segundo Pedro Barciela, são da mesma natureza que o movimento antipetismo. Isto porque ela fomenta alianças que antes só poderiam ser vistas estritamente no ambiente sócio-político.

Agora como entender os elementos que compõem este grafo e seus clusters?

A interpretação pode ser resumida da seguinte forma: os nomes que aparecem tem seu nome distribuído por tamanho de acordo com seu volume de interações. Quanto mais interações maior o nome aparecerá, sua localização no cluster estará no ponto onde se conecta com outros atores. Tais nomes também são chamados de nós. Taís nós são, dentro do ambiente de rede, tanto o que converge quanto o que bifurca interesses e conexões. Por isso, podemos afirmar que nunca as redes podem ser vistas como organismos fechados e homogêneos. Os nós podem ser antes de tudo o começo, e portanto está sempre aberto.

E as cores? Bem, as cores segundo a bióloga Carina Pensa, que utiliza grafos em seus trabalhos de pesquisa e os define da seguinte forma:

Os grafos, portanto, dão materialidade a algo que não podemos ver. Ao aplicar a análise de redes e usar os grafos podemos seguir interpretando os dados a partir das imagens que conseguimos ter a partir de diferentes ferramentas.

O que é importante destacar é que tais “fotografias” são como instantâneos e vão se alterando todo o tempo em função das interações ocorridas e dos eventos que se sucedem. As redes possuem interesses voláteis e por isso nunca representarão uma perspectiva fixa.

O exercício mais interessante é olhar para todos os dados e a partir daí seguir fazendo as interpretações possíveis a partir de todo o seu contexto.

Tal como ocorre com movimentos nas ruas, os movimentos em rede não são, nem uniformes e nem homogêneos. À medida que novos eventos ocorrem eles vão alterando o comportamento digital.

Observe-se pela manhã do dia 7 de Setembro de 2021 o movimento era maior, mas logo no meio da tarde e noite o levantamento de hashtags e engajamentos foram muito abaixo do que se esperava.

Observe o gráfico de engajamento nas redes criado também por Pedro Barciela. O gráfico mostra o engajamento em rede desde o dia anterior (06/09/21) e no decorrer de todo o dia 07/09. Fácil observar que a oposição teve uma reação bem maior contra o bolsonarismo.

Ao analisarmos fotografias do movimento nas ruas de Brasília na manhã do dia 07 de Setembro de 2021, basicamente no mesmo momento dos registros dos grafos acima verificaremos a dispersão de pessoas. Essa dispersão de pessoas levou ao menor engajamento em rede. Donde se lê que a rede acabou refletindo algo que estava ocorrendo nas ruas.

A interdisciplinaridade para análise da ruas e das redes

De tudo o que vimos, nas redes e nas ruas, fica claro que mais importante que imagens descoladas da realidade servem bem pouco à análise da sociedade digital. Sua complexidade entre diversos atores e mundos requerem uma multiplicidade de olhares. Mas antes e mais importante de tudo: são necessárias boas perguntas. Se não sabemos como elaborar boas perguntas a possibilidade de encontrarmos boas hipóteses e consequentemente boas análises interpretativas são pequenas.
O estudo tanto de redes sociais quanto digitais necessitam de um olhar interdisciplinar e atento.
E ainda mais importante: mesmo tendo em mãos muitas ferramentas para análise de redes, o sucesso depende daquele que circunscreve e delimita seu campo de investigação para posteriormente ser capaz de analisar de forma abrangente e perspicaz.

Gosto deste tipo de abordagem como análise social e digital pois permitem o cruzamento de diferentes dados. A reunião destes gera informação que pode produzir análise a partir de uma quantidade de variáveis e contextos. E aí temos uma prova fantástica de como nos dias de hoje áreas de exatas e humanas podem se unir para compreender a sociedade onde estão.

Este território de intersecção entre as áreas de Humanas com ferramentas das áreas de Exatas vem sendo chamada de Humanidade Digitais.

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** Artigos relacionados:
Lazega, E., & Higgins, S. S. Redes sociais e estruturas relacionais. Belo Horizonte. Editora Fino Traço, 2014.

SILVA, T. F. da .; RAMOS, T. C. da S. .; DAVID , H. M. S. L. .; VIEIRA, A. C. T. . Características e especificidades da Metodologia de Análise de Redes SociaisResearch, Society and Development[S. l.], v. 10, n. 3, p. e46510313622, 2021. DOI: 10.33448/rsd-v10i3.13622. Acesso em: 9 set. 2021

Rezende, Eliana Almeida de Souza. ”Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade”. An. mus. paul. [online]. 2007, vol.15, n.1, pp.115-186. ISSN 0101-4714. Acesso em: 9 set, 2021.

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Entenda a diferença entre Imagem, Identidade e Memória Institucional

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Alguma vez parou para pensar o que são: Imagem, Identidade e Memória Institucionais? E, como esse entendimento pode alavancar o ROI (Retorno Sobre Investimento) e a produtividade da sua instituição, ao mesmo tempo que a Cultura e Identidade Organizacional ficam ainda mais fortes?

Várias definições são possíveis, mas escolho aquelas que auxiliam numa síntese:

Se tomarmos a definição que os dicionários dão, Imagem seria o “aspecto particular pelo qual um ser ou um objeto é percebido“.
Imagem aplicada ao universo institucional seria a forma como as pessoas veem e/ou percebem a organização e tem como característica principal ser intangível. A Imagem é, portanto, subjetiva, exterior à organização.
A Imagem possui um sentido que lhe é exterior: projeta-se ao olhar externo.
É também a forma como a instituição se mostra publicamente, e pode ser vista nas suas escolhas de ‘logotipos’, marcas, rótulos, serviços, folhetos, uniformes e até produtos, entre outras coisas.
É sua exteriorização, exposta como em uma vitrine para consumo externo.
Em síntese: é todo seu patrimônio visual dado como informação para que o público forme sua opinião a respeito dela.

A Identidade é, segundo os mesmos dicionários o “conjunto de características que distinguem uma pessoa ou uma coisa e por meio das quais é possível individualizá-la“. Aplicado ao universo institucional é aquilo que individualiza e torna única uma organização.
Identidade é o que de fato a organização é e faz, é tangível neste sentido.
A Identidade é a essência da instituição. É o que ela é. Nem sempre se projeta na forma de produtos, mas é o que serve de base para suas linhas de ação, objetivos, missão, valores.

Imagem e Identidade podem confundir-se já que uma mesma empresa com sua identidade pode ter aos olhos do público diferentes imagens. Um exemplo muito interessante pode ser uma empresa fabricante de cigarros que possui uma mesma estrutura (identidade), entretanto, possui diferentes imagens se observada por diferentes públicos: fumantes, não fumantes e organizações anti-tabagismo. O mercado está repleto de exemplos de empresas que sofrerão influências positivas ou negativas de acordo como diferentes públicos as vejam e percebam.

Podemos portanto, afirmar que a existência de uma instituição se dá pelo tripé: o que diz sobre si, o que faz e o que outros dizem e/ou acham dela. Desta forma, as instituições possuem uma complexidade dada por aspectos tangíveis e intangíveis, objetivos e subjetivos, exteriores e interiores, construídos e constituídos. O sucesso em conseguir ter e manter uma boa imagem dependerá em grande parte da capacidade de ter e manter uma profunda identidade vincada a partir de sua essência. Sem ela, não se configurará como tendo força suficiente para imprimir uma marca na Cultura Organizacional.
Estará suscetível a ver, na passagem do Tempo, seu esfacelamento ou seu total desvirtuamento.

Mas, e a Memória Institucional?
A Memória Institucional é a forma como a instituição se vê e se projeta, só que no Tempo (ou seja, através de sua História). Diferente de Imagem e Identidade que estão sempre muito focadas no tempo presente.
A partir de uma Identidade bem vincada, a Memória Institucional se alternará com o Tempo e se modificará a partir de demandas do presente, exigências do futuro e das relações desta instituição com seu meio social, cultural, político, econômico. A gama de todas estas variáveis é dada pelo que chamamos de Cultura Organizacional. Algo profundo que permeia ações, modos de estar e se relacionar.

A Cultura Organizacional inclui as expectativas da organização, suas experiências, sua filosofia e os valores que a mantém unida, e é expressa na sua autoimagem, seu funcionamento interno, as interações com o mundo exterior, e suas expectativas futuras. É única para cada organização. E exatamente por esta exclusividade específica é uma das coisas mais difíceis de se alterar e/ou modificar. Mas é absolutamente possível cultivá-la, exatamente pela valorização de seu Patrimônio Cultural, Intelectual e Documental. E devido a isso, dependerá em grande parte de uma sensibilidade e inteligência histórica por parte dos seus gestores. Será tal inteligência que fará com que saibam dar o devido valor para a identidade que a sua instituição tem e de que forma sua preocupação em investir em sua Memória Institucional e Cultura Organizacional será fundamental para garantir que a instituição vença o Tempo e permaneça.

Desta forma, toda a produção institucional, na forma de documentos, informações, ativos, equipamentos, tecnologias que ajudam a vincar e fortalecer esta Identidade e Cultura Organizacional, são o que chamamos Patrimônio Institucional. Ainda podem ser incluídos nesta conta o Patrimônio Intelectual, formado por pessoas que através de suas ações e trabalhos ajudaram a construir e constituir a Identidade Institucional.

Mas cuidado: Memória Institucional não se resume à memória de guarda documental ou coleção de curiosidades e historias peculiares. Acreditar e praticar isso significa absolutamente não compreender o que seja este trabalho que necessita e muito do diálogo interdisciplinar e com práticas metodológicas muito específicas. Não há receitas prontas e usar fórmulas de terceiros não trará o que de fato se espera de todo este trabalho.
É preciso cuidado e muito rigor teórico e metodológico de áreas interdisciplinares (História, Arquivologia, Patrimônio, Gestão de Conhecimento, Comunicação, Relações Institucionais, Psicologia, Antropologia, Administração, entre outras) como demonstrei acima e em diferentes artigos.

Como fortalecer a Identidade Institucional ao mesmo tempo em que se preserva a Memória Institucional?

Fortalecer a Identidade Institucional por meio de um Projeto de Memória significa fixar, divulgar e preservar a História da instituição ao mesmo tempo em que se reúne, organiza e disponibilizam fontes e informações contidas em seus documentos, armazenados em diferentes suportes (fotografias, filmes, áudios, textos, mesmo seus produtos, entre outros).

Neste sentido, quando falamos em Memória Institucional estamos falando de um conjunto de experiências que, reunidas, dão a dimensão e os contornos da evolução da instituição no tempo e no espaço.
É a História viva que se constitui dia-a-dia.

A quem serve um Projeto de Memória Institucional?

A todas as instituições que, além de possuir um acervo documental de referência e memória, reconheçam seu potencial de fortalecer a identidade institucional, valorizar o capital intelectual e consolidar a cultura organizacional.
Sendo por isso importante veículo de comunicação corporativa para os públicos interno e externo.
Mais do que isso: um projeto assim construído e com tais perspectivas assegurará que a Instituição imprima indelevelmente sua marca na sociedade onde está inserida e possa ser referência em seus campos de atuação.

Ações de um Projeto de Memória Institucional e como a ER Consultoria pode auxiliá-lo:

  • Como pensar e estruturar um Projeto de Memória Institucional
  • Definir quais caminhos seguir
  • Como ir além da simples “perfumaria” (meras exposições, linhas de tempo e livros comemorativos)
  • Como utilizar as metodologias de Storytelling e História Oral
  • Como através de um Projeto de Memória divulgar e fortalecer a imagem corporativa/institucional
  • De que forma o Projeto de Memória Institucional pode valorizar o Capital Intelectual, podendo gerar Conhecimento e Inovação

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Escrita: palavra vincada

Por: ElianaRezendeBethancourt

Houve tempos em que a gaveta era o melhor amigo de um escritor. Era ali que o texto adormecido esperava seu tempo de maturação, ou até seu tempo de descarte: do não dito e escrito. As palavras assim esperavam adormecidas e quietas, o tempo em que a tinta as materializasse e lhes propiciasse vir à existência.

O texto adormecido na gaveta esperava sua sentença que podia vir cedo. Num acesso de fúria e destruição ou num período de limbo expiatório. O melhor mesmo era quando recebia sua emancipação e tornava-se um texto livre à olhos alheios.

Sim, os textos nos tempos de imediaticidade e consumo deixaram de ter essa maturação da escrita pensada e recomposta dia a dia. Literalmente lapidada para, palavra por palavra, compor um pensamento inteiro.

O sentido de escrita original gradativamente se perdeu e o que temos é uma que se insere substituindo e anulando a anterior.

Descartes simples e rápidos que não nos dão o sentido de sua plenitude. Oferecem-nos apenas e tão somente o produto do dia, do agora. Uma escrita quase que sem passado, sem rastros ou vestígios. Novos tempos de leitores e de escritas. Não apenas de seus suportes e formas de veiculação.

A gaveta oferecia  o tempo da intimidade. Algo que se cristaliza e pigmenta. A tinta encontrava o papel e se fazia pensamento materializado. Era ideia que se expunha.

A escrita, tanto como a leitura, são coisas que se cultivam e aprofundam com o tempo. Algo que tece nossas impressões sobre o mundo. Merecem ser pensadas com cuidado, lapidadas com tempo e apreço pela palavra que se diz e por quem a lerá. O tempo de escrita rápida e imediata em busca de respostas sempre prontas e rápidas tiram os textos dessa quietude que às vezes, é tão salutar. Ao mesmo tempo, e isso por experiência própria, um texto é sempre novo a cada vez que o retocamos. O rigor da gaveta pode inviabilizar um escrito.

Às vezes o ideal é simplesmente deixar a escrita solta e entregá-la à independência para que novas ideias surjam. Nem maiores e nem melhores, apenas oxigenadas pelo novo! A escrita tem mesmo esse quê de artesanato, de cuidado lapidar. Considero normal que um texto nunca esteja concluído, o que ocorre é darmos a eles a independência de nossa tutela.
É a emancipação do escrito.

Nos dois casos é interessante: se reescrita constantemente ou se amadurecida para um momento específico.
É palavra vincada.

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* 1º Post publicado no meu Blog, o Pensados a Tinta, e agora aqui no Portal em homenagem ao Dia Nacional do Escritor, comemorado em 25/07.

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Letra cursiva: a caminho da extinção?

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Recentemente lia sobre a decisão, e que em alguns países está se tornando lei, que é a de não ensinar mais a letra cursiva nas escolas para estudantes que estão sendo alfabetizados.

Ao que parece tal decisão pauta-se mais pelos que consideram que a escrita digital está substituindo a escrita cursiva, e que esta última não possui sentido em um mundo feito de parafernálias digitais e outras formas de composição do escrito.

Não sei se esta radicalização é correta neste momento ou se basta deixar os anos correrem para ver se a escrita cursiva de fato cairá na obsolescência e consequente esquecimento, tal como o dizem seus profetas apocalípticos.
Tudo acaba sendo especulativo.
Mas de fato, creio que essa opção de extirpar a escrita cursiva, ainda na alfabetização, será alvo de acaloradas e intensas discussões.
Um artigo interessante do The New York Times trata desta questão do ponto de vista do que se tem com a escrita de próprio punho. 

No lado oposto, estão os que defendem que a escrita de próprio punho é não apenas salutar, como ajuda a desenvolver aspectos neurológicos, de memória e retenção que nos meios digitais não seriam possível.

Em relação a isto, e até mesmo no Brasil muitos conteúdos têm sido revistos quanto à sua importância no currículo, e a letra cursiva é mais uma destas reflexões.

O que precisa ser levado em conta é que a transmissão da ideia de um texto escrito necessita ser inteligível a qualquer um, em dois aspectos: coesão e letra. Pois a ideia pode ser ótima, mas se perde quando a letra não possibilitar sua leitura e compreensão. Penso que a letra (qualquer uma delas) é um recurso intermediário e nunca o objetivo final.
De que vale uma letra maravilhosa com pobreza de ideias, sem clareza de raciocínio?

Para nós, que temos o domínio de todas as formas e formatos que a escrita pode ter, é apenas uma questão de escolha por um ou outro meio. Agora, optar pelo não ensino é uma discussão que vai muito além.

O maior problema que temos assistido é que da mesma forma que os suportes têm feito a cisão entre conteúdo e forma, o mesmo vem ocorrendo, ainda que de forma sutil entre escrita digital e cursiva.

Para, além disso, a escrita vem tornando-se fonética e encontra públicos usuários de todas as idades. Tenho para mim que seria um dos motivos de estarmos assistindo uma inviabilização da escrita cursiva com alguma fluência. Os alunos quase que junto com a alfabetização começam a se comunicar utilizando essa forma de linguagem.
Tão logo aprendem as primeiras letras incorporam os vícios da linguagem fonética.

Em outros tempos éramos alfabetizados e utilizávamos o encurtamento de caracteres para simplificar a escrita ágil, em geral para anotações de aula. Obedecíamos às regras e a forma taquigráfica tinha como base uma boa redação. Hoje o que temos são alunos que não aprenderam a ler, a se expressar e transformam essa expressão em código escrito que tenha inteligibilidade e correção.

Nossa sociedade, dita digital, está se habituando cada vez mais com a pirotecnia de telas e teclados e a cisão entre forma e conteúdo acontece sem se darem conta disso. 

Em tempos analógicos seria impensável separar conteúdo de suporte. Daí que a escrita de próprio punho cunhava sobre o papel modos de ser e expressar… a grafologia fornecia uma possibilidade concreta de análise do indivíduo a partir de seus dados, peso da escrita sobre o papel, aproximações e distanciamentos entre as formas gráficas. Todo um conjunto formado por tintas, papéis e mãos compunham uma identidade pessoal ao escrito. Forneciam indícios e sinais de quem era e até seu estado de ânimo no momento da escrita.

Com os processos digitais, conteúdo e forma se cindiram e hoje esta cisão acaba sendo “natural”, até para propiciar links e hiperlinks que saem de um lugar e vão ao outro em ritmo de sons, imagens, textos e cores e que muito pouco possui do traço do individuo. As formas já vem prontas e a disposição gráfica é homogênea, a partir apenas e tão somente de aplicativos determinados. Os textos não precisam mais de um suporte em papel e grafar um sentimento utilizando a escrita não necessariamente transmitirá a quem lê as sensações de humores e fragilidades como ocorria com a escrita sobre papel.
Passamos de inscrições à pena para esferográficas num longo período de adaptação que levou séculos. A estabilidade dos suportes em papel e da tecnologia de uma ferramenta como uma pena, lápis ou caneta levaram muito tempo dentro da história da escrita e leitura.

Ao contrário do que temos hoje, teclados substituíram de forma avassaladora o que tínhamos como referência de escrita e em pouco mais de duas ou três décadas começamos a achar impossível voltar a escrever como fazíamos. Ou seja, a transição dos suportes físicos para os digitais ocorreu de forma veloz e quase que sem transição. De repente paramos de escrever.

Aqui temos outra dimensão do tripé: leitura, escrita e comunicação. Enquanto a escrita de próprio punho possa sofrer alterações de ritmo e velocidade em função das tecnologias utilizadas, a leitura e a comunicação de ideias não possuem as mesmas características.
De um lado, pode-se ter acréscimos se pensarmos em compartilhamentos de qualidades e que amarrem de fato ideias. Mas sabemos o quanto isso tem se distanciado do ideal.
Apesar de programas facilitarem correções ortográficas e erros mais óbvios, eles não conseguirão extirpar problemas que tenham que ver com clareza e objetividade de ideias. Neste sentido, a escrita tem um componente mais “braçal” no sentido de exigir da parte de quem escreve, esmerilhar as palavras e encontrar as que comuniquem com maior clareza suas ideias.
Como um grande bordado, escrever e comunicar exige um ir e vir sobre o texto e buscar as melhores palavras e as encaixar nos lugares certos.

Só que em tempos de imediaticidade, contenção e superficialidade os textos, ainda que curtos, perdem muito da fluidez da boa escrita, pautada em boas leituras e concatenadas com raciocínio articulado. Essa “terceirização” que muitos estão fornecendo a corretores ortográficos e similares mutila e deforma conteúdos, mesmo os ditos profissionais…. infelizmente.

Com o tema encontramos a bifurcação entre a expressão comunicacional e seus suportes. Como um dado de suporte os meios que temos hoje chegam a agilizar pensamentos e formatar ideias. Mas é apenas, e tão somente, um meio. Se o que antecede a tudo que é formatação mental de uma ideia, um conceito que, ou o que quer que seja, não tenha um embasamento sustentável não haverá tecnologia que “conserte” isso.

Engraçado pensarmos como foi difícil todo esse processo. Minha dissertação de Mestrado começou sendo escrita em máquina de escrever e me lembro com perfeição que no início escrevia tudo à mão para depois digitar com medo que tudo se perdesse antes que estivesse definitivamente salvo. Temia que minhas ideias fugissem e eu as perdesse numa malha virtual. Preferia o árduo trabalho de escrever à mão para só depois digitar.

Hoje em dia, tenho que confessar minha escrita manual está cada vez mais lenta, minha letra definitivamente não é mais a mesma e hoje digito na mesma velocidade em que penso. Ou seja, minhas mãos não acompanham mais meu raciocínio. A digitação é infinitamente mais fluente e rápida.

Mas gosto de pensar que tudo é uma questão de escolha. Não creio em radicalismos, em especial o de simplesmente um decreto pondo o fim ao ensino da letra cursiva na alfabetização básica. Acho que as pessoas têm que ter a escolha… sem aprender fica um pouco difícil.

Essa facilidade que nós, da versão analógica sentimos, talvez não seja a mesma que as crianças sintam. Basta ver o fascínio que as telas sensíveis ao toque exercem até em bebês!

Notamos uma busca de ergonomia dos gadgets para que se assemelhem a modos que estávamos habituados a nos expressar, sendo a escrita cursiva uma delas, alguns inclusive incluem canetas e estilos em seus acessórios.

É óbvio que estamos de novo com sinais de novos tempos e apropriações culturais de códigos e postura no ler e escrever. Tal como a língua, a escrita e a leitura são elementos de nossa cultura e são vivos: sofrem mutações todo o tempo e simplesmente vamos nos adequando.

Lembro que as sociedades nem sempre mantiveram os mesmos padrões para a leitura e muito menos para a produção do escrito. Essa relação foi desde o sagrado (já que dominar a arte da escrita aproximava o homem de sua divindade) à estruturas que colocavam o escriba como um alto funcionário do governo. Era uma escrita técnica e absolutamente dominada por bem poucos.

A passagem para pergaminhos e tintas também não foi sem certa dose de elitismo já que era apenas nos mosteiros que elas eram realizadas e possuíam ainda essa característica de um poder concedido a poucos.

A imprensa e com elas os meios de disseminação da leitura, popularizaram posteriormente também a escrita. Foi a partir daí que as tintas ganhavam o papel e o imaginário das pessoas como forma de externar sentimentos e os séculos mais recentes, em especial o XVIII e XIX, conheceram a escrita romântica e o desenvolvimento das chamadas escritas ordinárias. Foi a época dos diários e da relação com a escrita como uma catarse. O século XX manteve boa parte disso e até mesmo técnicas de grafologia foram desenvolvidas exatamente para relacionar aspectos de personalidade com a escrita de próprio punho, conforme citei acima.

Talvez eu ainda seja romântica no sentido crer que a expressão pelas palavras deve vir em todas as formas e me encantam mais as palavras que seus suportes.

Pode ser que esse saudosismo que deixo transparecer pela escrita de próprio punho tenha que ver com uma pratica profissional e com uma experiência de vida. O tema da escrita e seus suportes são, para mim, forte questão até por que transcende meu gosto pessoal e perpassa meu ofício: sou historiadora e a lida com suportes de outro tempo quase sempre é uma constante em minha trajetória pessoal e profissional. Dado que aí é impossível não fazer as comparações. Ainda tenho muito vincado em mim a experiência da escrita de próprio punho.
Em diferentes momentos e artigos cito o papel das correspondências ordinárias como, por exemplo, as cartas. Um exemplo disso é o artigo que escrevi “Você ainda escreve cartas?”

Considero que definitivamente a escrita cursiva não significa apenas motricidade. Movimenta todo um conjunto de conexões cerebrais que favorecem o aprendizado, e não podemos deixar de pensar que é tbm tecnologia!
Mas não creio que isso seja consenso por ora. É um debate que se estenderá no tempo e no espaço.

Hoje em dia, as palavras deixam de ser pensadas e as correspondências giram em torno do imediato. Roubou-se a aura da palavra cunhada e da magia que seus complementos tinham (os selos, os papéis, os timbres, as tintas, o rebuscado de letras e formas, sua sinuosidade e curvas).

Apesar do ar saudosista tenho claro que as alterações no mundo em que vivemos são parte de um processo e que como tal não deve ser desprezado ou ignorado. Não vejo como um problema essa alteração que nossos tempos e tecnologias vêm imprimindo à escrita. O desafio é grande por que não vem só com a escrita fonética é todo um conjunto, e o que é pior: avassala toda uma geração cultural.

Há ainda a questão do raciocínio lógico e o uso de operações consideradas básicas. Os alunos em geral têm passado longe dessa capacidade e o que vemos cada vez mais é um analfabetismo funcional que alcança até os níveis de graduação e pós-graduação.

Não culpo apenas o sistema de ensino. Volto a dizer que sou fruto dele e nunca estive em uma escola particular. Foi necessária muita determinação e empenho. Algo que parece meio em desuso pela maioria dos discentes. Muitos optam pela lei do menor esforço e em geral até a escolha de uma faculdade passa por aquela que não tem processos rigorosos de ingresso nem de permanência.

Mas isso é assunto para outro post…

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* Versão revista e atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

** Artigo relacionado:
Rezende. Eliana Almeida de Souza. “Em tempos de tintas digitais: escritos e leitores“. Anais do II Seminário Internacional História do Tempo Presente, 13 a 15 de outubro de 2014, Florianópolis, SC. Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

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Apoiamos a utilização da Informação como base para gerar Conhecimento e Inovação nas empresas. Defendemos que a Memória Institucional possui um papel vital na valorização do Capital Intelectual, ajudando a consolidar a Identidade e a Imagem Organizacional. Além disso, ela deve ser vista como mais uma ferramenta de Gestão Estratégica que fortalece a Cultura Organizacional e promove a prática da Responsabilidade Histórica nas instituições.

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