Por: Eliana Rezende Bethancourt
Que Memória é essa?
Em primeiro lugar, é importante destacar que o conceito de Memória é polissêmico e, por esta razão, é empregado em diversas áreas do conhecimento, apresentando definições variadas conforme o seu contexto. Isso pode causar algum ruído e desinformação para profissionais que vêm de diferentes disciplinas.
Devido à isso, este artigo está relacionado com a forma como as Ciências Humanas e Aplicadas a usam, em especial a História, a Arquivística e as Ciências da Informação.
A Memória pode ser encontrada como um dos primeiros meios de registro de informações humanas, que se transmitiam e perpetuavam por meio da tradição oral.
Na ausência da tradição escrita dos povos antigos, a oralidade – fundamentada em memórias – atravessou os tempos e se tornou um recurso fundamental para que as comunidades compreendessem sua história e a sua trajetória até aquele momento.
Os relatos de Memória eram enriquecidos por detalhes e adições, tanto por quem narrava quanto por quem ouvia.
Nos dias de hoje, mesmo com a variedade de suportes disponíveis para o registro de informações, a Memória ainda se revela um campo muito interessante, pois continua intimamente associada às sensibilidades humanas.
Desperta curiosidade, encanto…afetos. E talvez por isso, vem sendo muito usada como uma estratégia em várias áreas, como ocorre com o Marketing, a Publicidade, a Administração, a Psicologia, mas também às Ciências Sociais, a Arqueologia, Antropologia, História, entre tantas outras…
Dada a diversidade de usos e aproximações, consideramos importante tratar três tipos de Memória que se conectam à nossa área de atuação. São elas a Memória Institucional, a Memória Organizacional e a Memória Empresarial. O artigo pretende esclarecer conceitos, distanciamentos e aproximações entre elas.
Além disso, pretende responder uma questão sempre presente: “a Memória Institucional é a mesma coisa que a Memória Organizacional e Empresarial?”
Vejamos:
Que Memória é esta?
1. Memória Institucional
Talvez o ponto mais importante a se destacar é que a Memória, como todo processo que ocorre nas dimensões espaço/tempo é uma construção, e portanto, NÃO está pronta em algum lugar para ser ‘resgatada’, como erroneamente alguns colocam quando falam em Projetos de Memória Institucional.
Não há um resgate!
As Memórias não estão prontas e intocadas como se estivem dispostas em uma prateleira onde as buscamos e depois a apresentamos como um produto.
Ou seja, não é uma entidade única pertencente à uma organização.
A Memória Institucional está longe de ser algo que se transmite e/ou se acumula como fazemos com documentos ou livros.
Ela representa uma intricada construção coletiva que mora nas representações de grupos e de pessoas que compartilham uma experiência num momento preciso, delimitado por tempo e espaço.
São um conjunto de experiências compartilhadas a partir de condições objetivas, sociais e históricas no interior de uma organização ou instituição.
E há mais:
A Memória Institucional não se dá por acúmulo. Ela é composta necessariamente por seleção e descarte. Tal como nossas memórias pessoais elas precisam reter apenas o que importa.
A partir de filtros e perguntas feitas no presente esta memória é revisitada e contada por quem a viveu.
De sorte que não há memórias certas ou erradas. Há apenas flashes que nos chegam através do tempo.
Fundamental entender que quando lidamos com um conjunto de pessoas pertencentes à uma mesma instituição teremos em verdade várias memórias, construídas e armazenadas segundo perspectivas, interesses, visões e compreensões individuais.
Não existirá pontos neutros ou verdades prontas a serem buscadas. Haverá versões.
A fantasia de que Projetos de Memória Institucional revelam e nos trazem um tempo é apenas isso: uma ilusão.
Exigirá por parte do historiador responsável todo um trabalho de elaboração e junção deste quebra cabeça individual junto com a pesquisa atenta de fontes documentais em diferentes suportes.
Serão elas que propiciarão a construção desta Memória particular e única, mas que é social e não individual.
Estas memórias serão fundamentais tanto pelo que revelam como pelo que não revelam. Silêncios podem significar muito numa trajetória de um Grupo. Por isso, o papel investigativo e de pesquisa são importantes para que tais momentos sejam de fato reveladores.
Um pouco de História…
No Brasil a experiência dos estudos sobre Memória e Identidade Social foram aprofundadas a partir de movimentos sociais, em especial ligados à Igreja Católica, que serviam como forma de resistência à ditadura Militar.
Como polo atrativo, a Igreja possuía grupos de jovens ligados à Igreja, mas tbm aos movimentos estudantis, movimentos sindicais e outros movimentos. Isso gerou por parte de todos uma solidariedade comum patrocinada pela experiência de perseguições, prisões, violências várias.
Cicatrizes ocorreram, vários morreram e suas identidades omitidas para segurança dos grupos envolvidos.
Por isso, a Memória precisa do Tempo.
É somente através da passagem do Tempo que a Memória reelabora experiências e consegue cicatrizar feridas, construir reconciliações, retomar caminhos, tanto de indivíduos como de sociedades e grupos. (RIBEIRO, 2004).
Assim, já nos anos 1960 existiu um interesse no tema.
Mas foi efetivamente nos anos 1980 que o uso e aplicação da História Oral como ferramenta metodológica para compreender os movimentos sociais se intensificou.
Além disso, foi um momento que se fortaleceram a criação de Centros de Documentação e Memória em sindicatos, grupos sociais diversos, universidades. Alguns acrescentavam às suas tarefas ser também referência para pesquisas e outros estudos de tais comunidades.
Um destes espaços fundadores tanto de técnicas quanto de metodologias para lidar com a História Oral e a sociedade foi o CPDOC da FGV no Rio de Janeiro, que desde 1975 iniciou um trabalho de coleta de depoimentos e a reunião de acervos sobre personalidades históricas da sociedade brasileira.
Era lançada ali as bases teóricas e metodológicas para todo um conjunto de profissionais que atuariam na área a partir da década seguinte.
A partir dos anos 1980 e após a produção do livro ‘Brasil: Nunca Mais‘ projetos começaram a ser desenvolvidos como forma de não permitir que esta resistência não fosse apagada pelo Tempo.
O Projeto “Brasil: Nunca Mais“ – BNM foi desenvolvido pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo nos anos oitenta, sob a coordenação do Rev. Jaime Wright e de Dom Paulo Evaristo Arns.
(…) O BNM é até hoje considerado a maior iniciativa da sociedade civil no Brasil em prol dos direitos à memória, verdade e justiça, tendo permitido, ao longo destes anos, reconstituir parte da história das violações dos direitos humanos durante o regime militar. Sua publicação foi também transformadora, pois impactou novas gerações com o valor fundamental do respeito à dignidade da pessoa humana.
No campo político, impulsionou a ratificação pelo Brasil da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e influenciou os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte que promulgou a Constituição de 1988, sobretudo quando esta define a tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. (…)” – (Fonte: BNM)
Era preciso dar voz a estes personagens sociais (eram pessoas individuais, mas a soma de todos forneciam uma identidade do Movimento Social como coletividade).
Leitura obrigatória deste tempos foi o livro de Emir Sader: “Quando Novos Personagens entraram em Cena – Experiências e Lutas dos Trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980“, de 1988.
Conto isso tudo pois integrei a equipe que fez a revisão final do livro Brasil: Nunca Mais como bolsista CNPq de Iniciação Científica.
Posteriormente, integrei dois Projetos fundamentais para minha formação intelectual:
Bolsista de Iniciação Científica CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), desenvolvendo trabalho de levantamento de dados, pesquisa documental e registro de depoimentos orais para formação de Banco de Dados especializado em movimentos sociais ligados a Igreja, além de revisão para publicação de Guia de Pesquisa e Inventário no Projeto: “Igreja e Movimentos Sociais: a atuação dos cristãos no Brasil República (1920-1980) na perspectiva de compreensão dos Movimentos Sociais” e mais tarde no seu desdobramento: “Testemunho e Imagem, nas perspectivas de compreensão dos Movimentos Sociais“, na CEDIC/PUC-SP (Central de Documentação e Informação Profº Casemiro dos Reis Filho) – de agosto de 1989 a agosto de 1991, sob orientação da Profª Drª Yara Aun Koury, e que posteriormente foi minha orientadora de Mestrado.
Foi exatamente a partir deste ponto que ficou claro a mim, minha orientadora e todo o Grupo envolvido no Projeto, que por meio da História Oral tínhamos uma ferramenta fundamental para acessar as memórias individuais dos membros destes movimentos, ao mesmo tempo que entendíamos o movimento social como um todo e como uma construção social coletiva.
Esta perspectiva se reforçou quando tempos depois, já no Doutorado, quando cursei um semestre com a Prof. Ecléa Bosi que apontava sobre a forma como a Memória pessoal acabava auxiliando a construir a Memória Social e esta última voltava e vincava o individuo e dava-lhe identidade.
Neste semestre de curso tive o privilégio de trabalhar com musicistas da ECA/USP e cada um de nós do Doutorado ficamos responsáveis pela coleta de depoimentos de músicos importantes da MPB no período de Ditadura, e o os depoimentos integrariam o acervo do Departamento e da História da música Brasileira, tornando-se fonte para pesquisa.
Fiquei responsável pelo depoimento e Memórias de Luís Chaves (contrabaixo) do Zimbo Trio que tocava com Elis Regina.
O curso e aplicação prática dos seminários e aulas me levaram à um outro patamar no que concerne ao “respeito ao depoente” como a Profª Ecléa Bosi gostava de dizer. Sempre nos dizia que a partir daquele momento estaríamos ligados para sempre ao depoente, pois ela havia nos confiado seu bem mais profundo: suas Memórias….
A Memória sem dúvida, é o amálgama que dava aos membros de um Movimento Social ou de um Grupo o sentido de identificação e pertencimento situado num contexto histórico, onde as relações sociais são também de solidariedade.
O trabalho de coleta de depoimentos e traçar o perfil desses sujeitos individuais eram importantes para traçar o caminho de compreensão do movimento como um todo. Ao mesmo tempo, com eles chegavam retalhos de existências em forma de recordações: fotografias, cartas, relatórios, livros, documentos e outros objetos tridimensionais que serviam como suportes de memórias. Daí a necessidade sempre recorrente de encontrar meios de os descrever e relacionar uns com os outros.
Do período que fui bolsista e Aperfeiçoamento do CNPq no Museu Paulista USP, sob supervisão do Prof. Ulpiano Bezerra de Menezes, e acompanhamento de Solange Ferraz de Lima e Vânia Carvalho aprendi a importância destes suportes materiais de memória e que se configuram como parte de uma cultura material que são elementos sociais que interagem com a memória, agindo como marco ou referência, tanto para o grupo quanto para o indivíduo.
Daí a importância do tratamento arquivístico a tais suportes.
Foi fruto deste tempo meu interesse por arquivos e documentos, ainda em formatos físicos. Bem como os registros fotográficos.
Por isso, minha especialização de 6 meses, em nível de Doutorado com bolsa FAPESP em Arquivos e Coleções de Fotografias dos Séculos XIX e XX em Lisboa com Luís Pavão.
O passar do tempo e o contato com diferentes agentes da história nos indicava que havia muito mais a desbravar e que ainda não eram tomados fartamente pela História como fontes de trabalho.
Eram, por exemplo: as instalações físicas, maquinários, patentes, projetos, entre tantos outros materiais que serviam de suporte às memórias destas pessoas e organizações e acabavam por compor nas instituições o que chamamos de Cultura Material que constituem o Patrimônio Institucional de várias organizações.
Constituem-se num ramo interessantíssimo que é a Arqueologia Industrial e suas relações com a Tecnologia de produção.
Quantas frentes poderiam ser abertas!
Com o passar do tempo, ficou evidente que a Memória Institucional não poderia ser reduzida a um mero agrupamento de curiosidades ou coleções pessoais de indivíduos ou instituições.
Ela deveria ser analisada e trabalhada de maneira integrada.
Acredito que essa seja uma das principais dificuldades enfrentadas por diversos pesquisadores. Considerando suas especificidades, esses documentos não têm valor por si só.
Lembre-se!
Se tomados em sua individualidade comporão apenas e tão somente um gabinete de curiosidades que NADA tem que ver com a cultura e identidade do movimento social ou da instituição.
Entenda: ISSO NÃO É HISTÓRIA E NEM É MEMÓRIA INSTITUCIONAL
Pode ser bonitinho, pode servir para uma exposição, para um brinde. Mas não podem ser considerados como trabalho sério.
É PRECISO ficar claro que nosso trabalho não é oferecer perfumarias intelectuais.
Rigor metodológico cabe em toda parte, e em nosso trabalho especialmente
Por que?
Porque a Memória Institucional é sempre subjetiva e parte da realidade de um determinado grupo social.
Ela é carregada de sentido e valor social e por isso em muitos casos, se relaciona com aspectos de poder. Se fosse uma pessoa diríamos que é subjetiva em sua essência.
Portanto, guarde bem:
2. Mas e a Memória Organizacional?
Diferente da Memória Institucional que se assenta na história e no social (porque afeita à um Grupo Social), e que portanto, possui um caráter permanente e abrangente. Relaciona-se à passagem e a estabilidade do Tempo. A Memória Organizacional é pragmática, carregada de objetividade e se relaciona à atividades e ações bastante concretas que ocorrem cotidianamente.
Por isso, está relacionada à processos específicos de gestão, gerenciamento e relacionados à produtividade.
Assim, a Memória Organizacional apesar de também acontecer por meio de relações sociais, ela foca a eficiência e eficácia organizacional cotidiana, com claros objetivos de ampliação da competitividade no ambiente organizacional e com eventuais concorrentes.
Tomo de empréstimo a distinção entre Memória Institucional e Memória Organizacional a fala de COSTA (1997) que faz a separação entre organização e instituição. Em suas palavras:
“(…) para que não se confunda o conceito de memória institucional com o de memória organizacional, pois o último tende a tratar a informação-memória privilegiando o aspecto da eficiência. De nosso ponto de vista, memória institucional abrange a memória organizacional, mas não se limita a ela. (…)”
Devido a essas características, a Memória Organizacional se destaca por facilitar o manejo da Informação para a geração de Conhecimento internamente, muitas vezes, oferecendo suporte para elevar a eficiência competitiva.
Desta forma, e pensando no âmbito de aplicação das Ciências da informação, a Memória Organizacional fornecerá os elementos necessários para que se possa ter processos eficazes de aquisição, retenção e recuperação da informação para a produção de conhecimento.
Sua utilização, em vários casos se dá pela Gestão de Conhecimento no interior da organizações. Ela está intimamente relacionada à potencializar o aprendizado organizacional, já que por meio dela se pode socializar e distribuir o acesso à informação contida nos documentos organizacionais.
“(…) A Memória Organizacional é compreendida como ferramenta e instrumento organizacional cujo intuito é gerenciar seus ativos intelectuais, econômicos e sociais, potencializando a antecipação de demandas relacionadas a ambiente, processos, procedimentos ou produtos organizacionais” (LASPISA, 2007).
Talvez a coisa mais importante a ser dita é que a Memória Institucional pode ou não ser pertencente à indivíduos, mas definitivamente a Memória Organizacional pertence a Organização. E como tal, só fará sentido se for continuamente utilizada e retroalimentada.
Segundo Menezes,
Ou seja, a Memória Organizacional se ocupa da produção, uso, reuso, análise e compartilhamento de informações para a produção de conhecimento e eventualmente inovação.
Torna-se um trabalho que atua fortemente no coletivo da organização.
Do ponto de vista hierárquico, dizemos que a Memória Organizacional pode estar contida na Memória Institucional, mas não o seu contrário.
A abrangência da Memória Institucional é maior.
E como são tratados os Acervos em cada um dos tipos de Memórias?
A Memória Institucional acaba fornecendo elementos ricos que suportam suas memórias e, em geral, são objetos pessoais únicos pertencentes aos indivíduos que integram estes grupos sociais.
Entram aí registros pessoais como cartas, fotografias, vídeos, mensagens diversas. Eventualmente haverá diplomas, placas comemorativas, homenagens, vídeos, etc.
Mas apesar de sua quantidade comporão sempre Coleções do ponto de vista de organização. E aqui tomamos o sentido de Coleção Arquivística que respeita os fundos (e não subtrai ou acrescenta objetos de acordo com vontades e desejos subjetivos de quem faz a organização).
Num Projeto de Memória Institucional simplesmente se decidirá se será ACEITO TUDO OU NADA da documentação reunida.
Não se poderá ESCOLHER quais objetos permanecerão ou não.
A subtração de documentos é simplesmente equivocada do ponto de vista teórico/metodológico.
Isso é fundamental do ponto de vista de organização de um acervo desta natureza que será PERMANENTE.
Do ponto de vista de uma organização, também não se poderá ‘escolher’ o que é histórico à partir da escolha de pessoas que participam do Projeto de Memória.
Como dito acima, documentos NÃO NASCEM PARA SER HISTÓRICOS. Eles ganham este estatuto de ser considerado histórico a partir da conclusão de suas funções e a partir da desejável elaboração de uma Tabela de Temporalidade Documental (TTD) que definirá os prazos prescricionais destes documentos. Somente aí será estipulada sua destinação final: guarda permanente ou eliminação.
Também NÃO EXISTE A ORFANDADE DOCUMENTAL no sentido de que estes documentos são produzidos dentro de uma estrutura. Possui objetivo e fins e se relacionam com outros documentos. Não se pode “quebrar” esta cadeia de relações por achismos, ou por considerar que se pode criar acervos históricos a partir de um ou outro documento.
Trabalhar com acervos significa tomar em conta metodologias, normas e procedimentos da arquivística. Mesmo havendo documentos históricos não se separa estes de todos os outros documentos.
Infelizmente este erro acontece de forma repetitiva, e os clientes por não saberem acabam tomando gatos por lebres. Cabe aos profissionais responsabilidade e seriedade intelectual para não seguir errando.
Memória Institucional e Memória Organizacional na prática
Um exemplo para que se entenda como se dá a intersecção entre Memória Institucional e Memória Organizacional em relação aos documentos produzidos no desempenho de funções de uma organização:
Uma indústria fabril produz tecidos e estampas.
A matéria-prima é comprada sem os desenhos.
Estes são desenvolvidos por uma equipe de arte e design que criam esboços, padrões, cores e fazem seus testes.
Após isso definem qual estampa será utilizada.
Numa segunda etapa, tais estampas e padrões serão novamente avaliados e serão feitos cortes para transformar estes tecidos numa coleção.
Esta coleção terá também seus croquis: alguém fará os desenhos, orientará os cortes e costuras destas peças. Mais tarde haverá toda uma publicidade a respeito do evento que exporá a coleção ao público em geral, apreciadores, críticos, clientes, concorrentes.
Chega o dia do evento, as roupas são vestidas por modelos e o desfile acontece com iluminação, decoração, músicas próprias.
A seguir, mais imagens e repercussões.
Ou seja, TODA esta cadeia de fornecedores de matéria-prima até o desfile final são parte do que chamamos de função e o sentido desta empresa fabril.
Apesar do burburinho final do desfile todo o caminho faz parte desta função, desde objetivo final.
Num trabalho de Memória Institucional seria tomada em conta a escolha de fornecedores, padronagens e tipos de tecidos.
Depois a definição de cores e estampas, desenhos, padrões de tecidos, as roupas elaboradas, o desfile, a música utilizada, a decoração, as entrevistas, etc, etc….
Tudo isso faz parte do que deveria ser a Memória Institucional sobre o que esta instituição faz e como faz.
Todo este conjunto revela muito sobre o DNA da instituição e como ela trabalha sua imagem e identidade perante concorrentes e público.
Isto é Memória Institucional!
E o que seria a Memória Organizacional neste exemplo?
Se a Memória Organizacional é pragmática e está envolvida muito mais nos aspectos relacionados à competitividade, interessaria a ela tudo o que se relacionasse a dados, como: cadeia de fornecedores, preços, concorrências, repercussão, vendas, tempo de produção, tempo de entrega, encomendas, alcance, lucros.
A Memória Organizacional está relacionada aos aspectos práticos que uma organização possui para existir e para gerar conhecimento e inovação.
Esta cadeia de produção fabril envolve muita criatividade mas também muita tecnologia, conhecimento do ambiente social onde está, conhecimento de consumidores, utilização de redes sociais e estratégias de publicidade e marketing.
O conjunto de todos estes processos servirão como estudo para uma nova coleção para que não se tenha que inventar a roda novamente dentro de seis meses. Com isso as informações são reutilizadas, recicladas e atualizadas para a nova coleção que virá.
E neste sentido temos a informação propiciando a produção de novas conhecimentos que incorporam inovações todo o tempo.
Assim a roda informação e saber geram Conhecimento e Inovação
Ou seja, por todos estes motivos podemos dizer que Memória Institucional NÃO PODE ser usada como sinônimo de Memória Organizacional ou Memória Empresarial. Há aspectos teóricos e metodológicos que distinguem cada uma delas.
Colocá-las juntas e misturadas revelam amadorismo intelectual e fragilidade teórica e metodológica.
O papel fundamental da Gestão Documental
Se os documentos possuem funções e estes se relacionam à necessidade de produção de documentos em diferentes suportes, é a Gestão Documental que fornecerá o embasamento teórico e metodológico para estabelecer os prazos prescricionais dos documentos e determinar onde estes documentos devem ser armazenados, por quem e por quanto tempo.
Será ela que impedirá que os documentos no interior de uma organização acabem sendo reunidos como peças de uma coleção para eventualmente compor um Centro de Memória qualquer.
No decorrer de minha trajetória tenho visto muito isso.
Empresas acabam sendo seduzidas para criar um Centro de Documentação para reunir seus supostos acervos históricos e as pessoas envolvidas não possuem a menor ideia do que seja o tratamento de acervos correntes, intermediários e permanentes e acabam sugerindo a criação de um local para a guarda de documentos históricos.
Erro sobre erro.
E aí assistimos historiadores que não tem a menor ideia de arquivística tentando criar uma coisa que simplesmente não existe avulsa que é um Acervo Histórico.
Não basta higienizar e colocar os documentos em materiais de longa permanência. È preciso fazer um trabalho técnico responsável.
De outro lado, às vezes temos bibliotecários cheios de boa intenção, mas que teimam em tratar documentos permanentes como se fossem livros ou coleções.
E há os arquivistas bons em fazer tabelas de temporalidade mas sem estar prontos em realizar o trabalho de Memória Institucional, que entre outras coisas significa construir a Memória a partir de um social e ter um arcabouço consistente em História.
O que estou dizendo?
Cada vez mais os jovens profissionais estão cindidos por suas áreas e não tem a menor ideia do que áreas vizinhas fazem.
Sugiro aproximação, leituras e se não for capaz peçam ajuda ao colega de área ao lado.
Em outros tempos (digo aqui por exemplo no meu caso, NÃO EXISTIA a Arquivologia em SP, apenas nas capitais federais, RJ e DF. Então aprendíamos tudo, mas hoje em dia já não é mais assim).
Era normal que os historiadores soubessem lidar com isso tudo sem cometer erros graves. É só pensar, por exemplo, em Ana Maria de Almeida Camargo e Heloisa L. Bellotto para ficar só em alguns dos maiores ícones de referencia em Arquivos e que eram Historiadoras. Mas hoje em dia os cursos, o mercado de trabalho e a compartimentação de saberes não capacitam os profissionais.
Por isso, vejo estes erros ocorrer com frequência.
Sugiro que antes de tudo, tenha a humildade de reconhecer que precisa de ajuda e a busque para não cometer erros que ficam difíceis de se desfazer.
3. E a Memória Empresarial?
Talvez a mais frágil de todas as explicações que já vi em uso.
As poucas tentativas que li confundiam e misturavam o que seria Memória Institucional e Memória Organizacional, mas foram incapazes de fundamentar o emprego desta definição.
O erro mais frequente: falar dos documentos históricos como algo a ser trabalhado separadamente pela empresa.
De novo insisto, isso é um erro metodológico e conceitual absurdo, além de não haver do ponto de vista prático NENHUMA utilidade.
Recursos são sempre escassos do ambiente das empresas .
Se você não integrar o tratamento técnico documental à todo o conjunto de produção documental de uma organização as chances de que alguma delas queira fazer um Centro de Documentação será NULA.
Ou optará fazer por razões erradas e equivocadas. Serão apenas e tão somente perfumaria para oferecer à visitantes e a mídia em geral.
Um outro erro imenso que vejo acontecer com frequência é a utilização da Memória como sendo Storytelling.
Histórias bonitinhas para encantar e estimular equipes.
Muito usada por áreas da Administração e Publicidade.
É um jargão que distorce absolutamente TUDO o que metodologicamente pode significar História Oral e trabalhos com a Memória.
Mas esta é uma conversa longa e fica para um outro post….
Enquanto isso, repense a utilização de conceitos e termos que você não for capaz de explicar teórica e metodologicamente e afaste-se de armadilhas que podem por em dúvida sua consistência profissional e intelectual.
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