Por: Eliana Rezende Bethancourt

Provavelmente se você for de uma geração que passou pelo analógico dirá que parou há muito tempo. E se for de uma geração um pouco mais recente dirá que NUNCA escreveu ou recebeu uma carta que não fosse um aviso de cobrança ou um cartão magnético.

Apesar disso, houve um tempo em que as cartas possuíam um ritual de produção e atenção. Eram artefatos para os sentidos. Muitos poderão se lembrar dos envelopes perfumados? Lembram-se deles?  Mas e agora, quando muitos não fazem ideia do que seja este tipo de troca?

Continue comigo por estes caminhos de memórias e sensibilidades, e quem sabe, se inspire!

Vejamos:

As formas de escrita sempre encontraram diferentes suportes e as cartas tal como os diários, representam uma forma de escrita ordinária onde imprime-se com o que se sente. As tintas, papeis, selos formam um conjunto que dizem tanto como as palavras. A materialidade dá as palavras um sentido de eternidade, de permanência.

Por isso, como historiadora meu olhar se fixa em detalhes que me informam sobre  remetente e receptor, sobre contextos de produção, circulação e guarda de formas documentais únicas e pessoalizadas. Registram fortemente laços, emoções e compõe junto com tantos outros o que história se chama de cultura material.

Carta mais antiga!

Para além disso, a relação com a escrita neste caso específico, é uma relação tátil e de afetos. Sob esta ótica, chegava a ser ritualística e envolvia um tempo cíclico composto de começo, meio e fim (não apenas em sua produção, mas em todo o circuito envolvendo o recebimento e sua guarda). Exigia uma composição que ia desde a escolha do tipo do papel, a tinta, o cunhar as palavras de próprio punho (em muitos casos, exercício árduo de boa caligrafia, praticada como arte ou prece em diferentes civilizações: como a árabe, chinesa, egípcia, mesopotâmica), a busca de um envelope que não alterasse o conteúdo fragilizado por formas de dobras e, óbvio: filas nos correios, compra de selos, o uso das colas e finalmente o encontro com uma caixa que servisse de fiel depositária até que esta encontrasse seu destinatário.

O recebedor da carta inspecionava quem lhe havia remetido, de onde, em que data e há quanto tempo ela viajava ao seu encontro, os selos e carimbo de registro indicavam o local e data de postagem, e por uma aritmética simples se sabia o tempo transcorrido entre envio e recebimento. Havia caminhos trilhados que seguiam por rios, mares, trilhas e montanhas. Podia levar dias ou até mesmo meses. A escrita em traços duráveis e em espaço íntimo trafegava por espaços públicos, de mão em mão, de pessoa em pessoa até o seu destinatário.
De fato uma grande elaboração!

Com tal caminho lento e tortuoso, sua leitura merecia igualmente uma liturgia: por isso não seria aberta em qualquer lugar ou diante de olhares inquiridores ou curiosos. Uma carta sempre significou algo pessoal e absolutamente privado, de interesse apenas ao seu destinatário. O melhor lugar poderia ser um escritório, uma sala, um quarto ou um canto qualquer num jardim ou espaço de conexão entre remetente e recebedor. Era ali, neste espaço quase sagrado, dado que privado, que era lida, relida e muitas vezes guardada afetuosamente entre os principais valores pessoais de cada um. Algumas continham o perfume dos papéis e até objetos que eram-lhes acessórios (pétalas, desenhos, e outros objetos que teciam com a carta os seus sentidos). A resposta quase nunca imediata necessitava do tempo da elaboração. Era preciso buscar todos os utensílios da escrita para além das palavras que expressavam de fato o sentido ao dito. A conexão propiciada entre tais objetos e os laços representados foram, no decorrer da história largamente representados por ficções literárias, teatrais e até cinematográficas. Sempre serviram de pano de fundo para enredos de afetos, amores, intrigas, ciúmes e todos os sentimentos mais humanos possíveis.

Como historiadora, todo este trânsito é fascinante e passível de muitas “leituras”. São modos de viver, pensar e produzir culturalmente: modos de estar. Uma carta tem a marca da cultura material que a produziu e por isso, é detentora de uma materialidade que conta algo único. Se inscreve no tempo e com todas as técnicas e tecnologias que este tempo possui: a letra cursiva que se debruça sobre um tipo de suporte composto pelo papel, pelo envelope, pelos selos, pela tinta e caneta utilizada. Mas também se inscreve como um conjunto de ideias e pensamentos justapostos para comunicar sentimentos, ordens, deveres, saberes, e tudo o mais que se possa compartilhar de forma pessoal e intimista.

Hoje, em tempos de tanta imediaticidade e consumo, tudo passa muito rápido, com economia silábica e fonética. As palavras deixam de ser pensadas e as correspondências giram em torno do imediato. Roubou-se a aura da palavra cunhada e da magia que seus complementos tinham (os selos, os papéis, os timbres, as tintas, o rebuscado de letras e formas, sua sinuosidade e curvas particulares).

A comunicação fonética é feita de modo a favorecer uma economia silábica para tipos impressos de formas mecanizadas, homogênicas e universais, produzidas com tintas de toners recicláveis em papéis produzidos massiva e monotonamente na mesma cor, padrão e gramatura. Em geral, tais escritos não chegam, além da materialidade digital e só em alguns casos conhecem as tintas. Seu tráfego vem por meio de trilhas digitais, que não levam mais que alguns segundos para chegar ao seu receptor. As informações destas mensagens, seus contextos de produção e circulação chegam através de metadados e com a passagem do tempo se perdem numa malha de desimportância, sufocada pelo acúmulo constante de mensagens que se justapõem.

Escrevi muitas cartas (imagine o trabalho que tive pelo tanto que sou prolixa!!!), recebi muitas e experimentei o prazer de estar longe do Brasil e aguardar ansiosa que alguma me chegasse. No período coexistia com e-mails, mas cartas ainda circulavam como última resistência a um mundo que insistia em mudar ante nossos olhos.
A adaptação houve. mas ainda tenho muito vincada em mim a experiência da escrita de próprio punho e as cartas para envio e comunicação.

Em meu ofício como historiadora e arquivista, já tive às mãos cartas escritas por pessoas que morreram há séculos, e tenho que dizer que é uma emoção ver ali a tinta impressa com a energia dos punhos de alguém como, por exemplo, Mário de Andrade. A forma como a caneta tinteiro modifica seus tons e como o papel vai ganhando um tom sépia à medida que o tempo passa. Uma carta em um acervo ganha tons e odores do Tempo e não fica indiferente a ele. É como ter entre os dedos notas de um passado pego num lapso de tempo no aqui e agora.

Os tempos hoje são outros:

Desaparecimentos e perdas são usuais e muitas vezes, temos a ingrata surpresa de descobrirmos que nossos conteúdos digitais foram para além das nuvens.

Obsolescências, superficialidades… pressa. São muitos os males que atingem nossas comunicações. Como disse, a relação é tátil e sensorial própria de um tempo que talvez tenha passado. Para nós, homens e mulheres de um tempo de transição, é às vezes difícil verificar como tudo passou tão rápido por nós.

Apesar de tudo, tento pensar que a qualidade dos textos se preserva e que apenas os suportes se alteraram. Mas infelizmente, todo o código social e cultural em torno dessas produções se alterou para sempre. O tempo dirá com quais resultados. Acho que o principal componente de todo este ritual de sensibilidades e cuidado era exatamente o Tempo e atenção dispensada ao seu preparo. Um verdadeiro mosaico de muitos prismas e sensações.

Você poderia perceber a atenção em cada detalhe material: o papel escolhido e sua textura, a tinta enquanto espessura e cor, letras trêmulas ou incisivas, as formas de dobra e até o tipo de envelope. Era tempo dispendido para comprar um selo, ir até uma agência dos Correios e lá postar. Tudo denotava cuidado, esmero, atenção e principalmente um dos recursos mais escassos que temos: tempo.

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Hoje, a volatilidade é grande. Com os meios digitais apascentou-se o espírito ansioso. Mas, e todo o “conjunto da obra”? Como referir a emoção que, às vezes tínhamos quando víamos o carteiro? Lembro-me de ter corrido atrás deles algumas vezes com receio de que minha carta não chegasse.

Bons tempos…

Como falar disso a um natodigital?! Eles de fato não saberão, infelizmente, como é isso. Não serão nunca capazes de compreender o significado disso tudo, especialmente porque sua relação com o mundo tem muito mais que ver com toques, teclas. Enviar e apagar estão no mesmo espaço que os tipos gráficos para a escrita.

Acho que uma amarração fantástica para este tema sejam os filmes “O carteiro e o Poeta”  e “Central do Brasil” . O sentido das cartas que tecem vida é uma deliciosa lembrança e uma forma belíssima da ficção encontrar a escrita.

Estamos no mundo atual vendo a conformação de uma nova relação com as formas de escrita, seus suportes e os modos pelos quais nos relacionamos com nossas correspondências ordinárias. É um patamar de mudança cultural, e por isso é tão afeito aos nossos esquemas sensoriais. E por ser sensorial, imprime em nós muitas emoções e sensações. Não há nada de errado em uma forma ou outra. O que de fato importa é que a comunicação se estabeleça. Óbvio está que se vier com mais elementos que alimentem o sensorial, melhor! Anteriormente tínhamos todo um conjunto de códigos de posturas, que davam uma forte dimensão de “valor” ao que imprimíamos em tinta, era uma escrita de próprio punho com as inconstâncias e oscilações do que nos vinha pela alma. Hoje a escrita padronizada e eletrônica tira isso e muitas outras coisas… mas é uma passagem, e como tal precisa ser trilhada…

A experiência da escrita, interlocução e troca é uma das grandes aliadas no alargamento do espírito. Nos oferecem olhares que de onde estamos não enxergamos. Por isso, o tempo despendido em cada comentário, em cada correspondência tem valor agregado que não possui cifras, é intangível. 

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O tempo da vida e as palavras que a nomeiam dão formas ao sentido e ao vivido pensado.  Nominar é, em última instância, “trazer à existência”. São com as palavras que expressamos ideias, sentimentos, projetos, sonhos, expectativas, reflexões, tecemos críticas e construímos pontes entre o sensível e o visível. Tudo isso as tintas fazem por nós. De punho ou em um jato de tinta contam ânimos e prismas de mundo. Com elas construímos e partilhamos o saber e o conhecimento. Construímos mundos…

Nas cartas havia todo o conjunto de sentidos que partiam junto com os escritos e daí talvez toda a sua magia. Eram remetidos com elas pedaços de nossas existências compostas, muitas vezes, com folhas secas, pétalas, fotografias, bilhetes de ingresso de lugares incríveis e até beijo feito em batom! Elas são de fato auxiliares sensoriais por onde nossas memórias encontram as vias de acesso ao passado.

Por isso, considero as cartas, tanto quanto fotografias e demais objetos de cultura material como de valor inestimável, e no interior das instituições devem ser consideradas pelo que são: Patrimônio Cultural/Documental que precisa ser preservado e cuidado para as gerações futuras. Informam, vincam e fortalecem a Cultura e Identidade destas Instituições e são a garantia de que vencerão o Tempo.

Por isso, se possui um acervo com tais preciosidades, não hesite em nos contatar. Teremos um prazer imenso em ajudar a como tratar e fazer falar tais mensageiros do Tempo.

COMO PODEMOS LHE AJUDAR?
Se você possui um acervo que seja Patrimônio Cultural/Documental e não sabe como zelar por ele, entre em contato com a ER Consultoria. Teremos enorme prazer em pensar numa Solução customizada para as suas demandas, ou para o tratamento técnico documental de acervos documentais e fotográficos e sua preservação e conservação.

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* Versão revista e atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

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3 thoughts on “Você ainda Escreve Cartas?

  1. Belíssimo texto, Eliana!
    Sabe que recentemente recebi a proposta de escrever uma carta que seria entregue, junto com uma máscara, para idosos que moram em um lar de longa permanência. Foi incrível! Escrevi duas cartas. Uma pra ela e outra pra ele. Fiz questão de escrever de próprio punho, colei uma figurinha e só esqueci do beijo de batom. Uma sensação única. Sou a Isabel, tenho 57 anos e sou professora aposentada.

    1. Ol@ Isabel…
      Não é mesmo uma delícia! Algo que imprime em nós e no outro um pouco do que estamos sentindo ao escrever. Pena que todo uma geração esteja perdendo este sentido de troca. Abs e obrigad@ pela leitura atenta e a interlocução. Coisas raras hoje em dia.

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