Por: Eliana Rezende Bethancourt
Segundo diferentes teóricos a sociedade de princípios do século XXI deixou de ser disciplinar, como ocorria nos séculos XIX e XX e passou a ser de performance. O que significa dizer que exige-se das pessoas estar todo o tempo hiperconectadas, ser multitarefas, e estar em um estado permanente de euforia e felicidade. Substitui-se a chamada obediência pelo desempenho.
O sujeito neoliberal do desempenho é dominado pelo excesso de positividade (estímulos) em oposição à chamada negatividade.
Tudo que esteja fora disso é considerado indesejável, contraproducente.
As pessoas precisam, para serem consideradas bons profissionais, ser multitarefas. Ainda que isso signifique um grau de desatenção atroz. As pessoas quicam de um lado para o outro achando que com isso possam ter, segundo linguagem corporativa, um diferencial competitivo.
O mundo encheu-se de academias de ginástica, baias de trabalho, prédios envidraçados, vias rápidas, equipamentos eletrônicos, eletrodomésticos computadorizados. Temos cada vez mais tecnologia, em teoria, para que tenhamos mais tempo. Mas, mais tempo para quê?
O que fazemos cada vez mais com o tempo que nos é ‘pretensamente economizado’?
O tempo encurta e, em verdade, as pessoas estão sempre cansadas, carregadas de afazeres e atividades. Onde foi que colocamos nossas prioridades?!
Estranhamente ao invés de, tanta hiperatividade e desempenho gerar coisas novas, encontramos em geral, a repetição incessante do igual. Cada vez mais temos mais do mesmo!
Até mesmo os vocabulários corporativos giram em torno das palavras de sempre: motivação, resiliência, eficiência, competitividade, iniciativa, diferencial, sair de zonas de conforto, etc…etc…etc…uma quantidade sem fim de termos usados à exaustão pelos chamados “mentores”, “coaches” e os que se autodenominam como “iniciadores” deste caminho de sucesso individual. Surge um mercado ávido e muitas vezes, baseados na má fé de uns sobre a boa de fé de outros.
Em verdade, a desatenção, hiperatividade e hiperconexão servem de sombra para ampliar horizontes e descobertas que só podem ser alcançadas a partir do sossego da mente e a capacidade de observação e quietude do espírito. Daí que o que acaba contando são comportamentos que podem ser cifrados e contabilizados por dígitos. Valores essenciais deixam de ser cultivados e apreciados tanto individualmente quanto institucionalmente.
É só olhar no mundo corporativo: as cifras, as metas, os índices, os infográficos e os KPIs. Olhe nas academias, nos esportes, nas escolas, nos veículos perfilados lado a lado quando um farol se abre, nas filas em geral. Em todos os casos, se busca a prioridade, ser o primeiro, o mais rápido, o melhor.
De seres humanos temos paulatinamente nos transformado em “máquinas de desempenho” que estão todo o tempo medindo e sendo medidos a partir das cifras que conseguimos produzir.
Afinal, quem tem tempo para a observação? Para simplesmente aquietar-se? Ouvir-se? Ouvir?
Não bastasse tudo, o inicio do século XXI também nos trouxe o Home Office em meio a uma Pandemia! De repente, aquilo que já nos consumia e atormentava encontrou meios de piorar um pouco mais.
A casa e ambientes residenciais tiveram que se adaptar as rotinas de trabalho, e em muitos casos o sentido de adaptação veio em seu pleno sentido! Reuniões online e atividades domesticas sofrendo enquadramentos diversos e seus proprietários buscando formas de encontrar um meio de equilibrar tudo. Não faltaram os que começaram a considerar que na receita toda estava faltando espaço e boa dose de saúde mental.
Somado à tudo, as tecnologias que poderiam ser as libertadoras de tempo e espaço em nossas vidas tornaram-se durante todo o período pandêmico ferramentas potentes de controle e expropriação. Reuniões sequenciais, muitas vezes mais que uma em um mesmo horário. Por meio de plataformas digitais, diferentes profissionais, conheceram o que seja o “não-lugar” e levaram à máxima de otimização do tempo às ultimas consequências.
Zoom, Meet, e congêneres passaram a oferecer facilidade, mas sua fatura incluía a disponibilidade ampla, total e irrestrita. Manter-se conectado, atento e muitas vezes, bem humorados passou a ser a regra geral. O teletrabalho ofereceu o confronto com os “outros” e consigo próprio no espelho. Dia após dia olhar nossa face ao mesmo tempo em nossos pensamentos povoam nossas mentes passou a ser uma regra. Questões de autoimagem passaram a ser permanentes, intimidades passaram muitas vezes a ser desvendadas, espaços invadidos. As fronteiras antes físicas que demarcavam espaços de vivências e intimidades se perderam entre uma porta e outra e, de repente, o mundo entra com todas as suas cores, imagens e vozes para dentro de nossa casa.
A vista e o confronto com a própria imagem diariamente por horas a fio elevou as taxas de cirurgias de pequena correção: são pequenas rugas, bolsa nos olhos, botox, nariz, um contorno de lábios, manchas na pele, quedas de cabelo. O confronto externo leva a grandes embates e combates com camadas profundas de nosso ego. Descobrimos muitas vezes que a imagem no espelho não nos agrada. E isso gera um profundo, um grande cansaço…
Espaços comuns para pessoas que detinham apenas parte de nossa intimidade são retirados de nós, e as sociabilidades passam a sofrer mediações totalmente inusitadas até aquele momento. Eliminam-se rituais de convivência: um almoço, um café descontraído, uma caminhada com colegas. Tudo é subtraído de todos, seus locais de trabalho, salas, computadores, mesas, apertos de mão, abraços, sorrisos largos.
A busca de performance ainda presente exigia atenção, conexão, disciplina (sem demonstrar atrasos ou aparentar fadiga, desinteresse, etc). As janelas invisíveis nos colocavam nus, e ali tínhamos de permanecer até que nos fossem dadas a fala ou a autorização de saída.
O ambiente digital trazia inúmeros desafios e uma nova etiqueta social, que por vezes gerava ansiedade, desconforto, insegurança. Mas tais sentimentos não eram bem vindos nestes ambientes. Assim, buscar a melhor performance era imprescindível.
Mas ainda havia o espaço físico.
A convivência por tempos maiores com os membros imediatos das famílias trouxeram à tona problemas até então suplantados por agendas lotadas com compromissos de trabalho ou sempre com muita gente em volta. As agendas lotadas contemplavam todos: de pais aos filhos. Até as crianças possuíam em famílias mais abastadas e que foram em sua maioria contempladas com o Home Office tinham a agenda de escolas, cursos de inglês, balé, judô, natação. Não havia espaços de solicitação, pois todas as brechas de tempo eram ocupadas e os pais apenas administravam os intervalos, levando-os ao fim do dia para dormir. A pandemia e o estar em casa todos juntos e misturados trouxe para uma grande maioria um estresse imenso.
Em verdade, as pessoas lidavam pouco com o que lhes causava ansiedade ou tristeza porque não paravam para falar ou pensar sobre elas. Mas a partir do momento que o único local possível era estar em casa e próximo aos seus problemas mais secretos muitos começaram a se deprimir, com amplas dificuldades de lidar com tudo que vinha de dentro e do lado de fora o medo, o desemprego, políticas de governo insanas, mortes.
Para muitos foi simplesmente demais.
Cada vez mais e como imperativo de alta performance corpos cansados e sem ritmo são estimulados por diferentes fármacos: doping de todas as formas. Sempre foi assim: mentes entorpecidas e distantes para problemas próximos.
A indústria farmacológica sempre apostou nos mais diferentes fármacos: há para cansaço, sono, tristeza, ansiedade, inapetência. Mas com a Pandemia esta indústria aumentou ainda mais seus tentáculos e possibilidades para lutar contra algo que ainda não tinha uma clara definição. Desde sempre é papel desta indústria farmacêutica produzir de tudo para que tais corpos tenham a garantia de sua manutenção na linha produtiva e performática.
A adequação da indústria farmacêutica às demandas de performance pode ser facilmente medida pelo seu volume de produção. Tomemos como exemplo o ano do inicio da pandemia no Brasil:
O faturamento do mercado farmacêutico cresceu 13,6% de janeiro a outubro de 2020. Nesse período, o volume movimentado por esse mercado foi de R$ 113,02 bilhões, segundo dados da IQVIA, que auditora o setor farmacêutico. As vendas de suplementos, vitaminas, relaxantes e antidepressivos tiveram destaque nos primeiros dez meses do ano – e estão diretamente relacionadas ao momento vivido pela população por causa da pandemia de Covid-19.
Reproduzindo o filósofo coreano Byung-Chul Han, um dos representantes desta linha de pensamento, no seu ensaio “A Sociedade do Cansaço”:
“(…)”O cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço a sós, que isola e divide”, conclui o autor. “Esses cansaços são violência, porque destroem toda comunidade, toda proximidade, inclusive até a própria linguagem.”(…)
O interessante e segundo o autor, somos escravizados mas não por outros. É uma demanda interna que enxergamos como sendo necessária para a nossa atuação. É uma escravidão onde temos a chave. Em suas palavras: somos prisioneiros e vigiais.
Este sentido de exploração que obedece uma demanda interna é muito eficiente já que produz a falsa sensação de “liberdade”, de “escolha” e se casa muito bem com uma concepção do que seja o neoliberalismo na vida das pessoas e o chamado espírito “empreendedor”.
Se casa muito bem também com a concepção muitas vezes equivocada de que são seus erros que causam seus fracassos, quando nem a sempre a culpa pode ser toda atribuída a si próprio. Mas é a melhor resposta a se dar ao carcereiro de sua alma.
Em resumo:
Embriaguez química e digital: excitação e atordoamento de toda uma civilização.
A incapacidade de se lidar com a dor, o sofrimento, a angústia são afastadas à todo custo, quer por drogas vendidas em farmácias, quer pelas drogas das indústrias de bebidas. O alívio é buscado como forma tanto de manter-se em todas as tarefas, ou como forma de entorpecer os sentidos e simplesmente lidar com a demandas da existência.
Para onde vamos se respostas humanas não podem mais ser dadas, sem ser tomadas como uma patologia que precisa ser imediatamente medicada?
O sentido de urgência e pressa chega também com a forma como se lida com as emoções e as muletas buscadas são de todas às ordens. A oferta é grande e pode ser de remédios à drogas, ou ao mercado da fé. Aos que não se encaixam nestas fugas possíveis há o Burnout (nome da Síndrome do Esgotamento Profissional – um distúrbio emocional que possui como sintomas principais a exaustão, o estresse e profundo esgotamento físico).
É preciso compreender que a sociedade de performance transforma a todos que não se dão conta disso em peças de engrenagem. O seu uso extenuante apenas levará a sua reposição, e na atual conjuntura há muitas esperando sua vez de ser sucateada.
É preciso ter crítica e fazer perguntas a si próprio sobre a forma como conduz sua vida e seu trabalho.
Afinal, para onde vai com tanta pressa e tão cansado?
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* Versão revisada e atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta
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Bibliografia:
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Giachini, Enio Paulo. 2. 2017. Vozes, Petrópolis: 128
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