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De Leitores e Leituras

Por: Eliana Rezende Bethancourt

De novo sobre leitores e leituras. Instigando todos a pensar um pouco…

Em “Utopia de um homem que está cansado“, Borges descreve o encontro do narrador com um homem de quatro séculos, que vive no futuro – ‘um homem vestido de cinza’, cor que envolve os mensageiros da estranheza em vários contos do escritor argentino – e que faz assustadoras revelações. Uma delas é a extinção da imprensa, “um dos piores males do homem, já que tendia multiplicar até a vertigem textos desnecessários”. (BORGES)

À revelação do desaparecimento da imprensa no mundo do futuro, o narrador responde com um longo discurso:

“Em meu curioso ontem (…) prevalecia a superstição que entre cada tarde e cada manhã acontecem fatos que é uma vergonha ignorar. O planeta estava povoado de espectros coletivos, o Canadá, o Brasil, o Congo Suíço e o Mercado Comum. Quase ninguém sabia a história anterior desses entes platônicos, mas sim os mais ínfimos pormenores do último congresso de pedagogos, a iminente ruptura de relações e as mensagens que os presidentes mandavam, elaboradas pelo secretário do secretário com a prudente imprecisão de que era própria do gênero.
Tudo se lia para o esquecimento, porque em poucas horas o apagariam outras trivialidades. (…)
As imagens e a letra impressa eram mais reais do que as coisas. Só o publicado era verdadeiro”
. (BORGES)

A verdade é que neste tempo distante e assustador de Borges extinguiram-se não apenas os jornais, mas também os museus e as bibliotecas. Inexistiam monumentos, feriados ou espaços de rememoração; inexistiam cidades. Dito de outra forma: todos os espaços destinados a cultura, convivência e memória foram extintos, restando apenas uma grande ode ao esquecimento, nada era feito para lembrar ou fazer recordar.

Tal como ocorre aqui no texto de Borges, a leitura parece ser feita sob muitas circunstâncias, para o esquecimento.
Gostaria de levá-los a repensar a literatura e suas relações com seus leitores e o contexto de produção de suas obras.

Isso porque a leitura sempre vai além do texto. É preciso tomar em conta o leitor, o escritor, o texto, a época em que o texto é produzido, bem como o tempo em que o mesmo é lido. Cada texto assim pode ser sempre recriado, reinventado a cada vez que é reinterpretado e/ou assimilado.
Mas vejo que cada vez mais essa forma de ler parece ser algo bem além do que nossa civilização seja capaz de fazer. Distraídos, dispersos e na maioria das vezes ávidos apenas pelo novo que chega, deixa essa possibilidade de leitura para trás.

Para este caso, a leitura tal como a conhecíamos no mundo analógico, talvez esteja encontrando o seu final. O déficit de atenção e a indisposição pela verticalização inviabilizam este tipo de leitura. Refiro-me àquela leitura quase que feita como degustação. Pausada em cada trecho, parágrafo ou ideia para melhor assimilá-la. Flutuar com os pensamentos por entre as linhas e pelos não ditos. Divagar por entre trechos, sensações ou mesmo silabas. Encontrar as brechas que rementem a outros encontros e pensamentos.
Percorrer uma obra é como visitar uma cidadela muralhada e oferece diferentes roteiros e percursos. Oferece experiências diversas para cada um que se aventura sobre ela. O bom escritor consegue caminhar com muitos tipos de leitores. E assim a mágica entre obra, leitores e leituras se dá.

Com as leituras feitas em tempos de textos hiperlinkados ou com um deficit de atenção e interesse abaixo dos razoáveis, aqueles que se dedicam à escrita terão que possuir uma sensibilidade ainda maior. Se pretendem alcançar seus leitores, deverão estar atentos ao modos que estes leem.

E assim, a literatura (seja ela de ficção ou não-ficção) e provavelmente, seus autores terão que tomar esse dado para além dos suportes e grau de interação possível e provável. O leitor sempre em fuga torna-se um “ser que quica”: pula de um lugar ao outro, com mentes dispersas, dedos ávidos e concentração ligada num modo mínimo.
E-books, por exemplo já conseguem determinar o tempo de concentração por página, velocidade de leitura por página e obra, o que ajuda a determinar o quanto um leitor de fato se detém sobre o que lê. Agora determinar o grau de proveito dos mesmos continua uma incógnita. O escritor nunca saberá se suas tintas de fato alcançaram seus leitores ou se simplesmente plainaram sem interagir de fato com o escrito.
Tempos novos, interessantes e de muitos desafios.

Crédito: Orelha do Livro

Felizmente acho que muito poucos ainda põem em questão o término do livro.
Há algo aqui que envolve a qualidade de leitores. O bom leitor é arguto, perspicaz e caminha com o escritor. Busca todo o tempo interlocução de ideias e conteúdo. E talvez aqui exista a maior fragilidade a ser vencida. O verdadeiro leitor é antes de tudo um ser crítico. Não no sentido pejorativo de gostar ou não das coisas, mas no sentido de saber ser interlocutor fazendo as perguntas adequadas ao lido e as transpondo para seu universo de atuação. É assim que se constrói repertório: ler; questionar; reformular e aplicar. Empoderar-se do lido e transformá-lo em seu.

Com os tempos de superficialidade de leituras temos cada vez mais pessoas apenas reproduzindo o lido, e é neste sentido que quero instigar os leitores a irem além do escrito e propor novos caminhos para antigos questionamentos. É fundamental que os que desejam ser verdadeiros leitores aprendam a de fato interagir com o autor: dialogar por meio de uma leitura eficaz.
Em outro artigo procurei mostrar como “Ler de forma produtiva“. Nele aponto diferentes formas de transformar sua leitura em algo verdadeiramente proveitoso.
Experimente!

Procurando ser bastante objetiva, nossos tempos oferecem uma complexidade e diversidade sobre o perfil de leitores e leituras.
Entenda:

Conseguimos ter vários tipos de leitores, talvez o primeiro deles seria os leitores analógicos: aqueles mais contemplativos de leituras lentas e longas, nascidos e crescidos num tempo de leituras e produção textual totalmente analógica. Este tipo de leitor se relaciona com a leitura de uma forma totalmente diferente dos chamados nato-digitais. Em geral, preferem publicações em formato físico e tem nos livros objetos pessoais de companhia e vida. Transitam com eles enquanto os lê e destinam locais especiais para que sejam armazenados, lidos, contemplados ou apenas vistos. Seus livros ganham espaços em bibliotecas, mesas de centros e escrivaninhas onde surgem não apenas como objeto para leitura, mas também são usados decoração, ou mesmo como forma de ostentação de status quo ou erudição. Em muitos casos são de fato, manipulados e usados como referência. Tê-los em mãos oferecem aos seus leitores uma experiência tátil que chega pela capa e tipos de encadernação, formato, gramatura de papel e qualidade do papel, dos tipos de letras impressas e das ilustrações usadas. Possuem um odor próprio: onde celulose e tintas se misturam e trazem um odor que lhe são próprios. Oferecem aos seus possuidores o prazer das sensações.

A seguir temos um outro tipo de leitor e que prefiro chamá-los leitores híbridos: não são nato-digitais, mas são intermediários entre os tempos analógicos e os digitais. Conseguiram assimilar as duas maneiras de produzir e ler textos, e de acordo com seu interesse vão de um à outro sem grandes dificuldades. De certa forma ainda interagem com os textos digitais da mesma forma que interagem com os textos analógicos, ou seja, leem de forma mais linear e atenta, alguns chegam a optar por concluir uma leitura para seguir por outra e assim sucessivamente. Ainda apreciam os livros em formato analógico, mas em vários casos optam pela praticidade de um e-book e começam a investir em bibliotecas mais digitais pela suposta economia de espaços e acessos. Será possível que este leitor híbrido tenha seus aparelhos digitais preferidos para leitura tanto quanto o leitor analógico tem seus livros preferidos.

Mas há o leitor que é ubíquo (aqui usando uma expressão de Santaella, 2013) na sua forma de ser: interage com suas leituras ao mesmo tempo que interage com o ambiente e com outros aparelhos. Usa fartamente possibilidades não lineares de leitura e segue indo de um lugar ao outro. Clica e pula por várias telas, meios, textos, imagens, sons. Concentra-se em ter os aparelhos mais recentes e provavelmente terão várias abas e aparelhos abertos em temas diversos. Em muitos casos, interagem ao mesmo tempo com o ambiente em que estão inseridos e os veremos conduzindo e ouvindo um podcast ou audio-livro, ou estarão usando mais do que um aparelho para funções diversas, incluindo-se até o uso de mensagens e telefonemas.
Para este perfil os textos não podem ser longos demais sob o risco e pena de serem abandonados sem muitas cerimônias.
A velocidade de rolagem das telas digitais fará quem em geral leiam apenas os primeiro parágrafos e rapidamente se dirijam para as linhas finais. Não aguarde deste tipo de leitor uma fidelidade canina ou fixação em cada palavra ou pensamento desenvolvido.

Se de um lado temos a possibilidade de ter um número maior de alfabetizados como em nenhum outro momento da história, por outro lado estes encontram-se dispersos e desatentos. A leitura deixou de ser algo restrito a muito poucos, mas a contrapartida é ter leitores mais dispersos e desatentos.

O que fica de fato é que cada vez mais teremos tipos de leituras para leitores diversos, e caberá aos que escrevem ter sempre isso em mente para conseguir encontrar-se com seus leitores.

Referências:
BORGES, Jorge Luis. “Utopia de um homem que está cansado
Danziger, Leila – O Jornal e o Esquecimento
Orelha de Livro
MARTINS, Vagner Basqueroto. “E-books em tablets: um estudo sobre a opinião de leitores adultos acerca de sua experiência de uso”. Curitiba, 2016 – Dissertação de Mestrado em Design, UFPR
SANTAELLA, L. Repercussões na Cultura e na Educação. São Paulo: Editora Paulus, 2013.

* Post atualizado de publicação feita originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

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