Por: Eliana Rezende Bethancourt
A cidade que nasci faz anos.
Mas não é para mim um aniversário feliz.
Talvez muito ao contrário, é como se eu perdesse a cidade que nasci, e que me vi crescer e amadurecer.
Os anos tanto para as pessoas como para as cidades, podem trazer-lhes grande e profundas marcas. Suas existências são vincadas por tudo o que há ao seu entorno, mas também ao que é parte de si.
Ironicamente, minha cidade faz aniversário quase junto comigo, uma diferença de apenas 3 dias! E talvez por isso, impossível esquecê-la e não pensar no que o Tempo tem feito com ela e suas gentes, incluindo a mim mesma.
Antes, e talvez por causa do frescor da minha juventude idealista e com muitos objetivos ela parecia-me tão atraente, desafiadora e até bonita em seus cantos, pontos, vilas e diversidades. Me atraia pelo que pareciam ser seus desafios, movimentos, edificações e gentes. Parecia um caldo onde muito e tudo poderia ocorrer e eu estaria ali para ver tudo isso bem de perto. A metropolização e adensamento neste tempo me parecia altamente positivo e chegava achar que ela crescia junto comigo. Cada rua, prédio, viela e equipamentos públicos representavam para mim um mapa de tesouros a descobrir: eram trilhas por diferentes tribos e isso servia de estímulo.
As ruas sinuosas e sem planejamento sempre foram desafios aos que por ela passam: tradição mantida deste os tempos de tropeiros e bandeirantes, mas que sempre foram para uma nativa um meio de fugir de imensos congestionamentos. As ruas tinham significado, alma, histórias. Bastava chegar até elas que todo o repertório de memórias eram acionados. Odores, sabores, cores me enchiam de recordações e isso era mesmo muito bom.
À medida que o tempo passou fraturas começaram a se fazer. Talvez tenhamos nos perdido nos excessos: gentes densamente amontadas em espaços exíguos foram tornando espaços antes tão agradáveis e estimulantes e locais que deixei de reconhecer como os que me acompanharam por toda a minha adolescência.
As sombras de prédios cada vez mais altos foram trazendo sombras e compartimentos. Cada vez menores, as vidas começaram a se miniaturizar, os espaços de convivência quase sempre se transformaram em estacionamentos, cinemas em igrejas, praças em ocupação para consumo de drogas, o verde foi desaparecendo na mesma velocidade que o asfalto e as vias se entupiam de latas sobre rodas, as livrarias foram paulatinamente dando lugar à venda de eletrônicos e quinquilharias sem valor agregado quase que algum.
Os relógios parados às portas de grandes magazines mostram que o tempo não volta, também não marcam mais as horas das sirenas, das entradas e saídas de fábricas, construções ou comércios. As portas fechadas às centenas nos apresentam apenas portas pichadas no aço escurecido de fuligem e poeira.
E assim, pouco a pouco fui sentindo que perdi a cidade em que nasci. Já não a reconheço como minha. Completamente gentrificada expulsa para longe os que são seus filhos e acomoda o capital como uma nuvem de gafanhotos, que muito em breve a abandonará e seguirá para o próximo ponto de destruição.
Infelizmente todo este processo autofágico foi mudando completamente minha perspectiva e olhar.
São Paulo não é mais aquela que eu via, vivia e sentia. Perdeu-se em algum momento da minha existência.
O olhar, hoje mais distante construído por muitos deslocamentos, idas, vindas e desapegos me obriga a vê-la de outra maneira.
Hoje ela está resignificada por mim.
Neste novo olhar detecto:
Sampa agoniza…
Sinto-a como uma Velha Senhora que está morrendo. E morre, não em seu momento de glória e vigor.
Deixa a cena de forma triste… é um corpo obeso que se movimenta com dificuldade: excedeu em muito suas capacidades de acomodar seus volumes imensos.
Suas artérias estão obstruídos e doentes. Não lhe faltam pontos de congestionamentos, deterioração, cicatrizes…
Seu pulmão falha, e quase não respira. Falta-lhe oxigenação. O cinza toma conta do ar que a alimenta.
Seu coração é o mesmo (um centro doente e volumoso) que já não acomoda e nem irriga suficientemente suas extremidades. Muitas partes sofrem a gangrena da pobreza extremada, da violência e de todo o conjunto que a miséria humana consegue patrocinar. O coração que antes batia forte hoje arfa com dificuldades de dar pulsação e ritmo ao que está distante.
Seus intestinos param dia a dia de funcionar. Os dejetos paralisam funções e não fluem como deveriam: seus córregos, rios e esgotos são apenas um caldo de abandono e descaso. Em vez de vida pulsando e se movimentando, o que há são vestígios dos restos: que se avolumam como indesejáveis e inservíveis.
A visão turva, opaca e sem brilho lhe impede de enxergar a lucidez que antes via em fachadas, arquiteturas… as cataratas do tempo lhe tiraram a beleza límpida de cores, vistas e formas. É como se apenas silhuetas borrassem seus sentidos. A paisagem que avista é apenas uma sombra triste de um tempo áureo que se foi. A vanguarda arquitetônica é susbstituída por ruínas ou bota-a-baixo todo o tempo… clareiras de cimento se abrem para serem transformadas em áreas de estacionamento ou prédios que massificam e acumulam pessoas em cubículos sem graça.
A Velha Senhora hoje vive de memórias retrógradas cozinhadas em banho-maria pelo abandono. O espelho mostra o quanto os anos lhe marcaram e trouxeram desgaste e imobilidade. Não se identifica com o reflexo no espelho. Nem mesmo nas suas velhas fotografias.
Suas vestimentas e ornatos estão puídos, largados, sujos… Não possui mais bens de valor e seus adornos quase não existem mais. Expropriadas por tudo e todos. Viu na passagem do tempo suas edificações e equipamentos urbanos ser diuturnamente roubados, quebrados, destruídos.
Já não ouve tão bem: os sons são muitos e lhe sobram apenas ruídos sem nexo. Muito barulho e quase nenhuma nitidez.
E apesar de toda a velhice e decadência, ainda chegam-lhe, ávidos, os que buscam as imagens de seu passado.
Triste confronto a todos, pois no espelho só há uma projeção disforme… de uma passado que se foi…nada além…
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* Versão revista e atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta
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