Por: Eliana Rezende Bethancourt
A humanidade é mesmo um mosaico de contradições que se manifestam sob vários aspectos.
Saio quase como que uma sobrevivente da que considero uma das maiores contradições ocidentais: o Natal!
O tempo tem passado e meu desconforto com esta data é inversamente proporcional a publicidade em seu entorno.
Não sei se pelo calor, congestionamentos, consumismo desenfreado, excessos de gestos, embriaguez, gulas e outras sandices guardo desta época profundo mal estar e péssimo humor.
Lia outro dia como o Natal é de fato, o maior exemplo de como se descumprir em apenas um dia um rosário de boas regras e condutas cristãs.
Vejamos:
Segundo o professor do Instituto de Psicologia da USP Cristian Dunker, que argumenta que o Natal vinculado ao consumo nega ponto a ponto os valores originários do cristianismo. Para os que não sabem quais são ou nem se lembra deles aí vão:
De minha parte vou ainda mais longe e explico as razões do meu mau humor com a data:
Andando pelas ruas, tanto nas vésperas como no próprio dia do evento, só o que vejo são pessoas vivendo seus excessos das formas mais primitivas: egocentrismo acentuado onde tudo o que é seu precisa ser o primeiro, o mais importante – as pessoas se acotovelam, espremem-se em estacionamentos, vias marginais, vagas… querem sempre o primeiro lugar, o melhor, e simplesmente estão dispostas a qualquer coisa para obter isso: buzinar, xingar, praguejar são a regra.
As pessoas em geral, estão sempre bêbadas ou inconvenientemente ‘altas’. Trafegam com garrafas e latas de cerveja como se fossem um troféu por seu ‘merecimento’ à suposta felicidade que tais drogas fornecem. Licitas ou ilícitas estão por todas as partes e lugares. Enfeitam selfies e são a medida usada para o quanto se está feliz e/ou se divertindo. Mas será mesmo que há tanta felicidade atrás de sorrisos plastificados e engessados para exibir um selfie?
Teríamos de fato tantos e tão grandes motivos a festejar ensandecidamente? Não bastaria o sentido normal que simplesmente estar agradecido bastariam?
Estas mesmas pessoas nos invadem com seus gestos exacerbados, carros com alto volume, gritarias, fogos de artifício (o que me causa o maior dos estranhamentos, pois afinal, o que isso tem mesmo que ver mesmo com Natal?!), ligações de celular e WhatsApp onde todos, mesmo sem querer, acabam ouvindo tudo o que é dito deste e daquele outro lado. O comum é ouvirmos mensagens gravadas de todos os que estão à volta, e não bastasse isso podemos ouvir em tempo real e a plenos pulmões as respostas…
Que saudades da civilidade que o celular nos tirou!!!
Por seu turno, pais e filhos nos oferecem o espetáculo dos subornos natalinos: presentes e mimos são oferecidos em troca de suposto ‘bom comportamento’ e ‘merecimento’. É comum assistirmos crianças aos berros gritando que querem isso ou aquilo, mas que ao término do primeiro dia estão entediados com a maioria dos brinquedos que ganharam, e os encontramos em geral jogados e quebrados num canto qualquer.
Saindo das ruas e indo para a intimidade as coisas não melhoraram muito. Se as reuniões estão ruins no início, ficam a beira no insustentável quando a noite avançou, a bebida aumentou e a comida esfriou: o assunto acaba, as alfinetadas começam e o tédio se instala.
Em geral, são aquelas reuniões onde seres que estão apartados há anos se encontram e precisam assim permanecer até que toda a comida ou bebida acabe. Não preciso terminar o roteiro: todos sabem onde ele vai dar. E não é novidade para ninguém como estas noites terminam.
As coisas podem ficar ainda pior, se o dia seguinte continuar a requentar conversas ao mesmo tempo em que se consume o que restou da noite anterior.
Mas ainda não fomos para aquele que substitui o aniversariante em protagonismo:
O pobre infeliz do Papai Noel tropical. Além de vestido com aquele pijama vermelho horroroso tem que aguentar toucas e botas que imitam peles…. num pais onde temos temperaturas, a esta altura, de quase 40 graus! Sem contar os que ainda precisam aguentar perucas, barbas falsas, e enchimentos para a barriga.
E ainda não é o fim do poço, pois há as decorações! Ah as decorações natalinas! Como conseguem reunir tudo o que há de mau gosto em motivos, cores e miniaturas?! Ficam piores quando tentam usar algodão para imitar neve ou papel picado para simular uma nevasca.
E as renas?! Como explicar o que é uma rena???? Aí temos a descontextualização somada ao mau gosto… simplesmente não aguento…
Mas ainda há as músicas e jingles. Alguém é capaz de circular por um shopping e pelas ruas sem enlouquecer?!
É demais para mim….
Muito além do que sou capaz de suportar.
E o “amigo secreto”?!
Como esquecer?
Quem pode suportar tamanho desconforto?
Em casa, no trabalho, com amigos de clube ou esquina, a brincadeira atordoa pela inconveniência e por revelar como se pode entrar em choque de uma só vez consumo, desinformação e empatia. Ninguém por mais tempo que permaneça com outro sabe adequar informações que possui sobre este ser que lhe coube num papelzinho com a devida empatia, sem destinar-lhe o vexame de receber aquilo que nada tem que ver com ele e ainda ter que agradecer!
Alguns dirão: “mas é voluntário, você entra porque quer”. Mas experimente tentar se esquivar e logo verá que a ‘opção’ não é tão democrática assim.
Atire a primeira pedra quem nunca sentiu vergonha alheia e constrangimento nestas horas. Anos se sucedem, e parece que os grupos não aprendem nada sobre seus ‘amigos’…
O pior é que este tormento, em função do consumismo, tem chegado cada vez mais cedo e os temos de enfrentar já no final do mês de Outubro!
E como não poderia deixar de ser temos a ampla gama das pessoas: totalmente alienadas acham que o feriado é a desculpa perfeita para beber até cair e comer até vomitar! É um espetáculo tosco, pois mostra o quanto ainda a barbárie orbita os humanos e o quanto estamos próximos de instintos tão primitivos.
E aí o pobre Jesus nem é mencionado em lugar algum: não está nas rodas de conversa, não é lembrado ou citado em nada. Valores que deveriam ser relacionados à data passam longe de ser praticados.As pessoas avançam sobre a orgia de comidas e nem se lembram de que seria um bom momento agradecer, fazer uma prece. O alimento está ali apenas para a satisfação dos sentidos mais carnais. Passam longe de um sentido de conexão com o sagrado. Uma mesa posta em meio à uma selva teria a mesma reverência de leões e leopardos.
Fico imaginando que, se pudéssemos fazer uma nuvem de tags dos dias que antecedem o Natal e o próprio feriado teríamos como palavras principais e pela ordem as seguintes: cerveja, churrasco, peru, pernil, carne, panetone, presente, amigo secreto…. Jesus, amor, fé, compaixão, etc, etc… não apareceriam na lista.
Se duvidar, faça você mesmo as tags do seu feriado…
Mas como para tudo o que é geral, existe as exceções, espero que você esteja entre aquela minoria que de fato tem nesta ocasião um bom motivo de estar em família, e usufruir este convívio de forma equilibrada, em sintonia de amor, paz, alegria e compaixão. Se assim for, é um grande felizardo: parabéns por integrar grupo tão seleto!
Aos demais só desejo que não meçam a felicidade desta data pela quantidade de álcool que consumiram ou pelo tamanho da fatura a ser paga em janeiro do cartão de crédito. Os dois casos só dão dor de cabeça e colaboram imensamente para o enriquecimento da indústria farmacêutica!
De minha parte, o conto de Natal que quereria ver era o que libertasse todos de suas algemas de supostas felicidades natalinas:
- ninguém teria que dar ou receber presentes que não quisesse;
- ninguém teria que assistir espetáculos inconvenientes patrocinados por taxas alcoólicas beirando ao coma;
- aquele Papai Noel fake totalmente liberto daquele pijama vermelho, com seus gorros e toucas;
- que a comida fosse farta em mesas bem arrumadas o ano inteiro;
- que encontrar toda a família e tirar disso prazer fosse a regra do ano inteiro e não um dia específico;
- que brinquedos nunca fossem usados como moeda de troca e suborno por bom comportamento, ou uma forma velada de suprir culpas e abandonos;
Natal Pós Pandemia COVID19
Impossível não falar sobre o que tem sido o Natal pós-pandemia. Afinal, transcorridos quase dois anos após o princípio do distanciamento social, o ano de 2021 agregou outras experiências as já difíceis e inconciliáveis das reuniões familiares:
Mais de 600.000 pessoas não se sentaram à mesa para a ceia ou Ano Novo.
Mas ainda podemos encontrar coisas piores nos balanços pós-pandemia:
Foi hora de conhecermos os negacionistas e antivax de plantão, muitos deles partes de nossa família mais imediata.
O negacionismo expresso, que muitas vezes, chega a parecer ridículo e absurdo é uma realidade em muitos lares. Chegam-nos da forma mais tosca possível:
– há os que não se vacinam por considerar que um chip chinês o rastreará;
– ainda há os que afirmam que existe uma conspiração comunista que se alastra pelo mundo e cabe à patriotas refreá-la;
– há os que tomam a vacina, mas continuam tomando medicamentos ineficazes que servem apenas para sarna e vermes.
– descobrimos que estávamos cercados de fascistas e agora é impossível olhá-los como antes.
Talvez de tudo o que disse o pior e maior de todas as contrariedades que sinto é o compulsório da situação: a liberdade de simplesmente não ter que participar, ver. Somos invadidos de todos as formas e a sociedade que vivemos pratica durante todo este período a vigilância e o controle sobre nossas vontades, e até não querer resulta em alguma forma de controle ou de recriminação. A sociedade de consumo rapidamente se transforma em sociedade da vigilância e torna-se impositiva.
Cansativo…
Enfim…
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* Versão revisada e atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta
** Ilustração de Steve Cutts
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