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Redes sociais: domesticação dos sentidos e da criatividade

Há quase uma década venho me dedicando a analisar e escrever sobre o que as redes sociais tem feito, e/ou deixado de fazer, à sociedade dita digital.

Transcorrido o tempo tenho notado que a fórmula padrão iniciada com Facebook se repete de forma exaustiva, e mesmo tendo sido sucedida de tantas outras, tem encontrado um público usuário/consumidor que conseguiu piorar ainda mais aquilo que desde o início não era tão bom.

Retomo neste ponto ao papel que o Facebook teve em introduzir uma sociedade analógica ao viver digital, ao se transformar na primeira grande rede com alcance que superou tudo o que havia existido até então.

Mas em pouco mais de uma década o Facebook começou a conhecer o imobilismo criativo. Envelheceu antes mesmo de chegar à idade adulta.
Festejado em seus primórdios pelas possibilidades e potencialidades de conexão e compartilhamento social, usos dos mais variados, hoje sua plataforma parece ter encontrado a senilidade. Apesar de várias tentativas, e muitos escândalos, não tem conseguido reter usuários e a debandada aumenta dia-a-dia.

Apesar disso, e do Facebook ter sido sucedido por inúmeras outras redes, sua essência contaminou e moldou tudo o que o sucedeu.

Explico:

A experiência da rede tem se mostrado acomodada, acrítica, extremamente passiva e muitas vezes simplória. Os usuários muito rapidamente acostumaram-se a fórmulas que consagram e incentivam a economia de pensamento crítico. Tudo reduz-se ao “curtir”, onde a mecanização do gesto guarda em si a ignorância. Em muitos casos, se não na maioria das vezes, o botão é acionado sem que a pessoa tome de fato conhecimento do que se trata.

A preferência imagética é quase total e a fórmula aqui é uma foto e uma frase. A simplicidade rudimentar agrada, já que exige pouco, tanto de quem comunica, quanto de quem é comunicado.

Tanto imobilismo não entreterá por muito tempo a Geração Touchscreen.
Afinal, nasceram em outro tempo e, como dito por vários especialistas: o Facebook vem se transformando em uma rede que concentra a chamada terceira idade virtual.
Os natodigitais e os mais jovens buscam outras alternativas como o YouTube que ultrapassou o Facebook em 2019 e mantém com isso a liderança entre os brasileiros.
Logo atrás do Facebook temos, pela ordem atual: WhatsApp, Instagran, Facebook Messenger, Twitter, LinkedIn e Pinterest.

Apesar desta aparente oferta diversificada, estamos em um universo de mais do mesmo: Zuckerberg é o dono do Facebook, WhatsApp, Instagran e Facebook Messenger. Com isso estende domínios e algoritmos semelhantes à todas as redes, e, por tabela, oferece sempre a mesma coisa: domesticação de sentidos e ausência de criatividade à seus usuários. A forma de obtenção de dados é sempre a mesma, uma expropriação aviltante, que em alguns casos chega ao crime.

O restante da lista de redes mais utilizados no Brasil é ocupada pelo Snapchat e pelo Skype, atualmente nas mãos da Microsoft. Em ambiente profissional temos o LinkedIn. De diverso quase nada do que se encontra no Fecebookistão. E aí vejo que o problema não é apenas as plataformas em si, mas seus usuários que, ao quicar de uma para outra, esperam encontrar sempre a mesma coisa e a mesma forma de se comunicar. Estão totalmente domesticados.

Denomino domesticação de sentidos o fato de que as pessoas simplesmente param de pensar e agir por si só e por seus sentidos próprios. Seguem um comportamento raso de simplesmente seguir o fluxo, ou como alguns preferem chamar, ter o comportamento de manada. As redes sociais seriam um domínio onde se oferecem condições que demarcam uma situação ideal onde comportamentos se reproduzem.
Tomo de empréstimo a concepção de “fazenda de domesticação“, explicitada em um artigo de Piero C. Leirner, onde: “(…) A fazenda de domesticação é um terreno de atração, lugar do domínio e da realização. Do domus, mas também daquilo que faz – daí a etimologia latina da fazenda – e, também, do que está feito, !rmado, !rmare, daí o farm anglo-saxão. Na fazenda se quer domar, atrair, controlar essa força conjurada de um devir selvagem. É um latifúndio, não tem cerca, não se sabe bem onde começa e onde acaba; se sabe que ela quer crescer cada vez mais, e que pode até ter uma sede, mas o processo de domesticação ocorre em todo seu horizonte. Sua política, assim, é doméstica. Não há centro preferencial, “centro do centro”; se todos seus espaços se pretendem centrais, nesse nível sua geopolítica se dilui (…)”.
O artigo se concentra em explicar como o Estado domestica as sociedades e as pessoas. Mas para o objeto de nosso tema, ouso me apossar da expressão para pensarmos o ambiente das redes e a forma como ela se torna um grande feudo chamado internet. Ao oferecer os meios e as ferramentas, bastam apenas que atitudes sociais e culturais sejam imprimidas em seus utilizadores. Os aplicativos funcionam como os meios pelos quais se domesticam sentidos, sentimentos, e se externalizam isso. Tudo que ali ocorre é amplificado. As redes, portanto, não são diferentes do mundo analógico que temos. Apenas oferecem amplificação. Mas os sentidos domesticados nos dão a sensação de que grande parte parece apenas lobotomizadas.

Diante disso, nos mantemos em um loop infinito.

Observe:

Uma das coisas mais interessantes que temos que estar atentos é o padrão de repetição e passividade que uma plataforma, dita de interação e compartilhamento acaba oferecendo. Hoje é muito mais usual a passividade ante ao exposto, quer na forma escrita quer na forma visual, do que posicionamentos críticos e assertivos. Ironicamente as redes simplesmente eliminaram o que seja interação. Tornaram-se sim um palco para ostentação ou, o que talvez seja pior, um local onde prolifera o ódio, os xenofobismos, rancores e uma putrefata linguagem onde se faz linchamentos de reputações e vidas.

É estarrecedor pensar que cada vez mais as pessoas escolham apenas uma opção: “curtir” para expressar TUDO o que pensam sobre um tema. E o pior, mesmo que elas queiram se colocar, pouco estão interessadas em saber aprofundadamente sobre. 

A previsibilidade e constância de conteúdos e ausência de inovações são também igualmente avassaladoras. O grande meio de compartilhamento não está gerando, na mesma proporção, ideias criativas e inovadoras. Os grupos e as comunidades organizam-se de forma quase provinciana, no sentido de manutenção de pequenos nichos e interesses. Restringem-se ao miúdo e cotidiano de uma comunidade restrita e local. Mesmo em redes como LinkedIn nota-se que a última década simplesmente matou as possibilidades de interação, e as pessoas estão cada vez mais ausentes. Ausentes não por não estarem conectadas, mas simplesmente por optarem estarem confortavelmente instaladas com seus aplicativos nas mãos e a anos-luz de qualquer forma de contribuição, interlocução ou debate.

O que de fato temos, ao invés de um grande potencial de variáveis, é a repetição de padrões e fórmulas. Em geral, as pessoas cercam-se do que lhes é familiar e conhecido. E o mesmo se estende pelas formas de externar pensamentos e atitudes.

A cópia de ideias e até de conteúdos são constantes em blogs e em outros meios. É sempre muito raro encontrarmos conteúdos inéditos e de qualidade, fruto de uma reflexão pessoal de seu postulante. Temos quase sempre clichés que reproduzem falas vazias e que surgem de tentativas de auto-ajuda, motivação ou preconceitos mesmo. Fato que nos dá uma sensação e necessidade de perguntar: para onde é que vamos? Será mesmo que “todo excesso é prenúncio de uma grande falta?”

De fato, um temor sempre presente é em relação a esse excesso de informações rasas no qual estamos vivendo e se, de outro lado, não estaríamos às vésperas de uma grande falta. Isto é cíclico e está no desenvolvimento da História. Gerações que rompem estruturas, são fruto de uma geração anterior em que quase nada ocorreu e vice-versa. Isso vale para movimentos na arte, literatura, sociedade, política… e até no futebol!

O tema nos remete ao que significou o desenvolvimento da internet, as novas formas de comunicação e proposição de relações. Foi de fato um período de romper barreiras, estruturas e formas de estar e pensar. Hoje, é perceptível o atual momento como de uma saturação sem fim: as pessoas, especialmente em redes como o Facebook, LinkedIn, Instagran possuem um comportamento que ora é passivo, ora consumista, ora de ostentação.

Passivo em se contentar com simplesmente “curtir” ou “compartilhar” sem verticalizar nada. Fica-se numa superfície horizontal onde “toda” a mensagem se resume a uma foto ou uma frase (pior é quando eles vêm sem autoria correta e em muitos casos uma reprodução infinita de Clarice Lispector ou Caio Fernando Abreu).
Consumista no sentido de seguir não sei quem e nem porquê…
Ostentação de vidas e sucessos: ninguém tem problemas, tudo é uma felicidade e sucesso sem fins. Ou às vezes aquela choradeira interminável para falar sobre o “poder da superação”. Cansativo, de verdade!

Espalha-se um rastro de gostos e desgostos a troco de ter dados “embalados” e oferecidos às agências de publicidade que não param de poluir páginas feita em azul para que você, de novo, curta isto ou aquilo. É preocupante esta massificação zumbi de comportamentos e incapacidade de ações críticas de acordo com posicionamentos próprios frente ao dado ou estabelecido. Falta identidade e personalidade às redes!

Se todo o potencial que a internet oferecia não for reinventado e as pessoas não voltarem a buscar formas inovadoras, teremos cada vez mais plataformas que cairão vítimas de seu próprio veneno: o consumo pelo imediatamente novo. Não será para o melhor… simplesmente para o mais novo lançamento, sofrerá o descarte e substituição tal como um velho aparelho de TV de tubo.

Sim, o objetivo é irmos além de propriamente gostar de uma matéria interessante, mas é também verificarmos o quanto ela tem que ver com nossas opções, escolhas e repertório. Quanto de fato acrescenta àquilo que pensamos e acreditamos? 
A passividade não é desejada em espaço algum, mas em espaços ditos de compartilhamento e troca, fica ainda mais estranho.

O Facebook em verdade ditou um padrão, acolhido por uma maioria que é de curtir/compartilhar, como ferramentas de facilidade. É mais fácil clicar num botão de gostei ou postar uma foto e uma frase do que de fato articular um raciocínio e falar sobre algo de forma a acrescentar ou se colocar.

A massificação zumbi e robotização aparece como um instrumento de massa para obter cifras e dados e não como forma de gerar crescimento intelectual ou de conteúdo.  

É óbvio que não estamos aqui para questionar números. Contra tal não há argumentação. E talvez tenham sido alcançados exatamente por essa homogenização. Todos são tomados como meros algoritmos que são computados a partir do “gostei”. A situação é tão interessante que em tempos passados até campanha para ter o botão “não gostei”, houve. Mas claro que isso confundiria o sentido de construção da base do Facebook e demais redes em relação aos seus algoritmos, e portanto, nunca foi adotado por ninguém. E aí nos defrontamos com a situação absurda que é, por exemplo, a notícia da morte de alguém ou de uma catástrofe e que as pessoas sem pensar clicam “gostei”. Isso mostra o ápice do que seja um comportamento de manada zumbi sem critério ou crítica.
As pessoas simplesmente não param para pensar sobre isto!   

Buscar um olhar crítico envolve debruçar-se sobre. E em geral, as pessoas julgam não ter “tempo” para isso. A cultura da imediaticidade e consumo leva as pessoas para longe de estar em contato consigo próprias. Basta andarmos pela rua e vermos cada um com seu celular, seu jogo, sua música nos ouvidos. As pessoas não buscam mais relacionar-se com outros, mas sim com seus gadgets. Já disse antes que a internet tem conseguido o paradoxo de aproximar quem está a centenas de milhas ou quilômetros e em geral, separa os que dividem a mesma casa!

Esta robotização com ensimesmamento foi reforçada com as redes. E aqui há discussão para um post inteiro e que guardo para outra ocasião. 

Mas adianto que em cada período a humanidade está propensa a que determinados comportamentos se desenvolvam e se disseminem. Esta “massificação zumbi” é mundial e muito mais relacionada ao processo de midiatização e tecnologia em que estamos.

Há um narcisismo generalizado e uma busca por exposição que tem muito mais a ver com uma insegurança e temor de estar consigo próprio do que a necessidade de relação com o outro.
Os silêncios da alma são fantasmas para alguns e a busca da “multidão” tem um pouco esse sentido de fuga.
A robotização zumbi e massificada combinada com a alienação parecem ser uma marca dos nossos tempos.

Para além disso tudo, acho que o padrão de repetição em formatos idênticos para todas as redes é o que mais incomoda. De repente, Twitter e até LinkedIn repetem o mesmo padrão como forma de garantir que seus usuários continuem a usar suas respectivas plataformas. Aí tivemos o fenômeno do que se convenciona chamar de ‘Facebooquização’ virótica por TODAS as redes.

Sou usuária e gosto muito de tecnologias, mas gosto de pessoas, silêncios e leituras, gosto da reflexão que ações e comportamentos têm, ou de uma boa ideia exposta num texto, ou até numa frase. Não precisamos nos isolar e nem viver no meio de tudo. Há o caminho do meio sempre! Estar nele significa conseguir olhar de um lado e de outro e encontrar o caminho perfeito que há quando se tem equilíbrio e bom senso. 

Discuto aqui que esta alienação consentida, onde o nivelamento horizontal alcança tais redes numa velocidade muito grande e onde verticalidade, profundidade e criatividade estão deixando muito a desejar. As pessoas chegaram a um ponto que não conseguem mais ler um artigo. Leem apenas a primeira linha e passam adiante. Sou capaz de apostar que apenas 1% dos que começaram este artigo chegaram até aqui…Por isso, já há algum tempo parei de me preocupar se as pessoas leem ou não. Meu papel é de escrever!

Um dos precursores da realidade virtual e crítico da web 2.0, Jaron Lanier defende um caminho diferente para se utilizar a rede. Ele é defensor de uma internet aberta, mas não completamente gratuita. A questão levantada por Lanier é estrutural. O problema é que a rede, gradualmente, direciona e agrupa os usuários em blocos. As informações ‘sugeridas para o seu perfil’ escondem uma variedade enorme de outras possibilidades e, ao categorizar por ‘gostos’, tornam o usuário um produto bem definido para publicitários, por exemplo. Ou seja, no modelo atual, quem lucra mais são os sites de busca e as redes sociais, e quem sai perdendo são os criadores, que dependem dos direitos autorais para viver.

Segundo ele, a estrutura atual permite que exista uma ‘agência de espionagem privada’ que desvirtua o propósito inicial de permitir que cada usuário pudesse trocar seus bits com outros, como em um grande mercado, e tudo seria acessível a uma taxa razoável. Esse fluxo permitiria que a criação individual fosse devidamente remunerada e estimularia o trabalho intelectual. Nesse sentido, ele afirma que “precisamos de um design mais antropocêntrico ao invés de um focado em algoritmos”. O senhor Lanier quer não apenas, a liberdade de trocar informação mas a liberdade de pensar e de ser criativo em um modelo que, atualmente, anestesia, cada vez mais, seus usuários.

Desde os primórdios, o Facebook teve como característica coletar dados e a partir deles ter concentrada uma ampla base de dados. Longe de ter um viés relacional, cultural, educacional rapidamente transformou-se num meio eficiente de fornecer dados para fins mercadológicos e de consumo. Ponto. Os algorítimos utilizados foram ficando cada vez mais competentes em nos limitar, enquadra e sempre nos levar aos mesmos lugares. Escrevi sobre isso no artigo: “Algorítimos: os hábeis limitadores

Sua facilidade rudimentar trazendo funções simples com botões de uma única opção deu à maioria das pessoas o que elas querem: entropia! É neste estado entrópico que as pessoas realizam ações robotizadas e em alguns casos até insensíveis (como por exemplo: filmar alguém morrendo, sendo espancado, etc…para a seguir lançar na rede em busca de reconhecimento por meio de likes).
O mesmo podemo falar de TODOS os celulares: não importa a versão, modelo…TODOS rigorosamente apresentam os mesmos botões e funções. O objetivo é o consumo feito por TODOS de uma criança de 1 ano ao octogenário, de um analfabeto funcional à um acadêmico letrado. A tecnologia envolvida está longe de buscar inovação.

Apesar de tudo, vejo que em verdade, o Facebook e demais redes sociais acabam sendo um grande espelho de comportamento social e cultural do nosso tempo. E eventualmente, as plataformas servem apenas para refletir o que a nossa sociedade é em sua maioria: superficial, frívola, autocentrada e egocentrada.

Como historiadora, fico sempre imaginando o que pesquisadores daqui há alguns séculos dirão ou apreenderão quando olharem perfis de redes… que sociedade verão no espelho?

Fotógrafo: Eduardo Henrique Gonçalves

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* Texto atualizado e revisto de post publicado no meu Blog, o Pensados a Tinta, com o título de “Facebook: robotização e sedentarismo em rede”.
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