Por: Eliana Rezende Bethancourt
Estranho como uma relação entre criador e criatura pode ser tão forte e simbólica.
Ainda ontem relia este artigo que escrevi quando Mafalda se tornou cinquentenária (Setembro, 2014). Para minha surpresa, um dia após o aniversário de surgimento, o Sr. Joaquin Salvador Lavado, o Quino, nos deixa. Ele falace exatamente um dia após o aniversário de criação de sua eterna Mafalda.
O que nos fica?
Como uma boa ideia com humor e crítica ácida à mistura podem render bons anos de vida? A resposta em uma única palavra é: Mafalda. Contestatória, politizada, insatisfeita com o mundo. Sempre cheia de questões e inquirições. Uma ardorosa aversão às sopas. Niña esperta, espontânea, sabida, verborrágica: sempre com muito a dizer.
Mas a garota apesar de manter-se uma menina nas tiras é uma cinquentinha.
Considero que a coisa interessante no caso da personagem é sua sobrevivência no tempo a partir de uma boa ideia e doses de “realidade”. A atualidade está exatamente em explorar as vivências e angústias de todos, independente de onde ou como vivam. É um questionamento para um mal-estar que nós latinos entendemos tão bem. Penso também sobre sua estabilidade e permanência em um mundo feito de tantas obsolescências e descartes. O que a torna ainda tão factível?
A primeira coisa que me vem à mente é exatamente essa inteligência ingênua, antenada e bem humorada que lhe confere tanto sucesso e permanência até hoje.
A politização com crítica mordaz dão um tom todo especial e, independente do país e da idade, nos identificamos com seus pensamentos.
Mafalda dentre tantas coisas não é apenas e tão somente um personagem de tirinhas. Nasce como personagem de campanha publicitária e emancipa-se pelas tirinhas. Ela representa toda uma sociedade (no caso a argentina) do final dos anos ’60 e começo dos anos ’70. Uma sociedade que vive em ditadura de suas fronteiras, e que vê os países vizinhos vivendo a mesma situação. Assiste a uma guerra em andamento no Vietnã e os EUA em plena expansão imperialista.
As tirinhas eram publicadas diariamente e sempre se relacionavam aos eventos cotidianos ocorridos na própria Argentina, na América Latina ou no mundo. Era portanto, produto de um contexto social, politico, econômico e trazia muito da própria personalidade de Quino, que era em sua essência um contestador e crítico da sociedade em que estava inserido. Mafalda externava todo este DNA de seu criador. Era ela que dava voz ao mundo efervescente em que estavam.
A sociedade é confusa para seu olhar: não sabe bem porque há uma guerra no Vietnã, inocentemente se preocupa com a presença dos chineses, não sabe o porque de tantos pobres em volta, desconfia da mídia (jornais, revistas, TV) e do “Estado” (militar) e só consegue ter clareza de que não se conforma!
O mundo, sob sua ótica, está doente e ela anda às voltas com a busca para solucionar o que está errado. Cercada de adultos, não consegue compreender porquê os pais e todos os outros permitem e estragam o mundo. Nada fazem.
Os colegas não lhe trazem maiores respostas e aparecem como síntese de visões pequeno-burguesas: Manolito, que apesar de coroinha, tem como principal valor o dinheiro. Felipe é o sonhador romântico de plantão e Susanita convertida ao espírito de um consumismo burguês.
A convivência com estes já não era fácil, mas chegam os dois mais novos integrantes de sua turma: Libertad, responsiva mas muito pequeninha e o Guille (irmão caçula de Mafalda) capaz de dormir ouvindo rock e se deslumbrar por Brigitte Bardot.
Era o fim para Mafalda!
Diante de tantas contradições, talvez seja simples compreender o porque de tantas inquietações e verborragias trazidas por ela.
Imagino o quanto Mafalda se indisporia com o mundo em conexão e redes ditas sociais, os conflitos que ainda alimentam a fome imperialista americana e como direitos humanos continuam sendo violados. Não é mais só o Vietnã! Proliferaram países, guerras, lutas e motivações. Temos a Síria, Palestina, Croácia, Coréia, Irã, Iraque e por aí segue. Os pobres e desvalidos pela fome, pela guerra, pela discriminação de todas as ordens e faces (religiosas, étnicas, culturais, de gênero, sociais), doenças convertidas em verdadeiras epidemias aumentam dia a dia.
O planeta geme de muitas formas: há tempestades, tufões, furacões, tsunamis, secas prolongadas, queimadas. A política cada vez mais corrupta e sem limites éticos, morais, valores. Uma incompreensão sem fim.
Sim, é há a mídia. Agora não apenas impressa ou televisa. Chega de todas as formas. Uma explosão de sentidos e significados, e a desinformação cada vez mais usada como tática para atingir seus fins.
Temos que pensar que Mafalda surge na mesma época em que a televisão surgia e trazia ao debate sobre os meios de comunicação de massa e o quanto imprimiriam novos comportamentos à sociedade em geral. Sua resistência aos meios de comunicação como meios de manipulação mostram este desconforto que era vocalizado dia-a-dia nas questões de Mafalda.
Quantos temas!
Mafalda teria muito de que se ocupar.
Mas acho que o que menos interessa é a idade em si. A comemoração mostra o quanto essa personagem tem eco em diferentes sociedades. Esse eco reforça a concepção de que uma boa ideia desenvolvida com inteligência sempre é bem vinda! Em geral, interessa pouco a procedência do personagem. É este vigor o que comemoramos. É esta forma simples, direta, e de traços igualmente simples que comemoramos. Afinal transmitir ideias e inquietações pode até ser divertido. Quino e Mafalda nos mostraram isso por mais de 50 anos!
Ela faz aniversário, mas quem ganhou o presente fomos nós! Afinal, Mafalda chegou numa bagagem trazida pelos adolescentes dos anos 60/70 e apresentada aos adolescentes atuais pelos sessentões de hoje. O ideário da personagem não envelheceu e se mantém tão moderno como quando foi apresentado pela primeira vez em 1964. As aspirações, angústias e questionamentos continuam os mesmos.
E aí vejo uma outra metáfora para a nossa Mafalda. O tempo não precisa ser tirânico e nem amedrontador. Basta apenas estar em sintonia com seu tempo. O vigor não precisa de botox e outras plásticas, que na verdade só cuidam do que é externo. Sua juventude vem de uma mente sã, perspicaz, concatenada com a atualidade do seu tempo e suas complexidades. Perigosamente generosa!
Da minha parte, partilho com Mafalda a inquietude, questionamentos, politização com a existência e uma necessidade imensa de troca. Talvez por isso, goste tanto dos Grupos, de Debates e da escrita. Me dão combustível para alimentar e saciar minha sede por perguntas e busca de respostas.
Assim sigamos, pensando, trocando e buscando argumentos e quiçá consigamos a longevidade e perenidade de Quino e Mafalda: criador e criatura!
Este aniversário fica mais triste, pois o Sr. Joaquín, o Quino nos deixa…
Mas está eternizado em nossas mentes e corações….
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Dica de Leitura:
Mafalda e a televisão: a comunicação de massa nos quadrinhos de Quino
Mafalda e Quino
* Post atualizado a partir de publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta
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