Arquivo da categoria: Cidade

Dias Escuros em Tempos molhados

Por: Carlos Drummond de Andrade – Correio da Manhã, 14/01/1966*

Por: Eliana Rezende Bethancourt**

Os dias escuros
“(…) Amanheceu um dia sem luz – mais um – e há um grande silêncio na rua.
Chego à janela e não vejo as figuras habituais dos primeiros trabalhadores.
A cidade, ensopada de chuva, parece que desistiu de viver.
Só a chuva mantém constante seu movimento entre monótono e nervoso.


É hora de escrever, e não sinto a menor vontade de fazê-lo. Não que falte assunto. O assunto aí está, molhando, ensopando os morros, as casas, as pistas, as pessoas, a alma de todos nós. Barracos que se desmancham como armações de baralho e, por baixo de seus restos, mortos, mortos, mortos.
Sobreviventes mariscando na lama, à pesquisa de mortos e de pobres objetos amassados. Depósito de gente no chão das escolas, e toda essa gente precisando de colchão, roupa de corpo, comida, medicamento.
O calhau solto que fez parar a adutora.
Ruas que deixam de ser ruas, porque não dão mais passagem. Carros submersos, aviões e ônibus interestaduais paralisados, corrida a mercearias e supermercados como em dia de revolução.

O desabamento que acaba de acontecer e os desabamentos programados para daqui a poucos instantes.
Este, o Rio que tenho diante dos olhos, e, se não saio à rua, nem por isso a imagem é menos ostensiva, pois a televisão traz para dentro de casa a variada pungência de seus horrores.
Sim, é admirável o esforço de todo mundo para enfrentar a calamidade e socorrer as vítimas, esforço que chega a ser perturbador pelo excesso de devotamento desprovido de técnica. Mas se não fosse essa mobilização espontânea do povo, determinada pelo sentimento humano, à revelia do governo incitando-o à ação, que seria desta cidade, tão rica de galas e bens supérfluos, e tão miserável em sua infra-estrutura de submoradia, de subalimentação e de condições primitivas de trabalho?
Mobilização que de certo modo supre o eterno despreparo, a clássica desarrumação das agências oficiais, fazendo surgir de improviso, entre a dor, o espanto e a surpresa, uma corrente de afeto solidário, participante, que procura abarcar todos os flagelados.

Chuva e remorso juntam-se nestas horas de pesadelo, a chuva matando e destruindo por um lado, e, por outro, denunciando velhos erros sociais e omissões urbanísticas; e remorso, por que escondê-lo?

Pois deve existir um sentimento geral de culpa diante de cidade tão desprotegida de armadura assistencial, tão vazia de meios de defesa da existência humana, que temos o dever de implantar e entretanto não implantamos, enquanto a chuva cai e o bueiro entope e o rio enche e o barraco desaba e a morte se instala, abatendo-se de preferência sobre a mão de obra que dorme nos morros sob a ameaça contínua da natureza; a mão de obra de hoje, esses trabalhadores entregues a si mesmos, e suas crianças que nem tiveram tempo de crescer para cumprimento de um destino anônimo.

No dia escuro, de más notícias esvoaçando, com a esperança de milhões de seres posta num raio de sol que teima em não romper, não há alegria para a crônica, nem lhe resta outro sentido senão o triste registro da fragilidade imensa da rica, poderosa e martirizada cidade do Rio de Janeiro (…)”.

Rio de Janeiro – 1966

Não, não a História não se repete…a História não é cíclica. Nós humanos que gostamos de nos repetir em nossos erros vezes sem conta.

Aprendemos pouco com o que o Tempo nos deu e teimamos em ocupar espaços que não nos pertencem, em cobrir caminhos que margeiam rios, encostas. Teimamos em alterar itinerários, desmatamos e largamos cicatrizes imensas em territórios que não possuem como se proteger a não ser permitir que corredeiras se façam.
As águas que escorrem misturam-se a terra que rapidamente vira lama e esta como uma onda pegajosa arrasta construções, objetos e pessoas quase sem diferenciar cada um deles pela força que os consegue arrastar. Deixa atrás de si um rastro de destruição, perdas e mortes.
E é assim que todos os verões sabemos que a chuva chegará dentro de uma grande nuvem negra, que se desabotoará por encostas e atingirá prontamente aqueles que nem sempre por escolha estão ali. E assim, ano após ano contamos nossos mortos e ouvimos as promessas que NUNCA se cumprirão de que haverá moradias e lugares decentes para todos.

Tal como nos diz o poeta são nos dias escuros que percebemos que a luz que nos deixou trouxe a água que enche ruas, bueiros e leva tudo o que encontra. Serão estas águas que carregarão os corpos de trabalhadores urbanos e suas casas insalubres e farão subir as estatísticas das vidas que foram interrompidas. Acontece que vidas interrompidas são projetos de existência que não se deram, que não ocorreram e NUNCA poderão ser confundidos com estatísticas de inundações, deslizamentos ou desabamentos.

A cidade, os leitos de rios e córregos transbordam e acabam por refletir a forma como eles próprios são maltratadas, usados e desrespeitados. O lixo produzido e jogado por janelas ou despejados em esgotos ilegais auxiliam no acúmulo do que será despejado logo à frente quando estes encontrarem barrancos e barracos.

Os elementos são muitos e variados e cada sociedade e tempo traz seus elementos que comporão as crônicas do dia seguinte, que parece se repetir indefinidamente… não adianta culpar a História… é preciso aprender com ela para simplesmente parar de se repetir…

São Sebastião – São Paulo Fevereiro de 2023

______________
* A enchente a que o poeta se refere é a ocorrida na cidade do Rio de Janeiro em 1966, que resultou em 250 mortos e mais de 50 mil desabrigados.
** A escolha de publicar a crônica do poeta se deu pelos volumes de chuva no Litoral de São Paulo em Fevereiro de 2023 onde choveu em 14 hs e 683 mm de chuva. O maior índice pluviométrico da História do país até aquela data.

*** Posts Relacionados:
♫ ♪ ♫ TOMARA QUE CHOVA… 3 DIAS SEM PARAR ♫ ♪ ♫
Por ruas e cruzamentos numa Pauliceia desvairada
Sampa: a Velha Senhora…
Arquitetura e Literatura: uma escrita sempre possível
Arquitetura tumular: a cidade dos mortos no mundo dos vivos

****Siga-nos: 
No LinkedIn
No Pinterest

© 2021 ER Consultoria em Gestão de Informação e Memória Institucional
Todos os direitos reservados
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998).

Sampa: a Velha Senhora…

Por: Eliana Rezende Bethancourt

A cidade que nasci faz anos.
Mas não é para mim um aniversário feliz.
Talvez muito ao contrário, é como se eu perdesse a cidade que nasci, e que me vi crescer e amadurecer.
Os anos tanto para as pessoas como para as cidades, podem trazer-lhes grande e profundas marcas. Suas existências são vincadas por tudo o que há ao seu entorno, mas também ao que é parte de si.

Ironicamente, minha cidade faz aniversário quase junto comigo, uma diferença de apenas 3 dias! E talvez por isso, impossível esquecê-la e não pensar no que o Tempo tem feito com ela e suas gentes, incluindo a mim mesma.

Antes, e talvez por causa do frescor da minha juventude idealista e com muitos objetivos ela parecia-me tão atraente, desafiadora e até bonita em seus cantos, pontos, vilas e diversidades. Me atraia pelo que pareciam ser seus desafios, movimentos, edificações e gentes. Parecia um caldo onde muito e tudo poderia ocorrer e eu estaria ali para ver tudo isso bem de perto. A metropolização e adensamento neste tempo me parecia altamente positivo e chegava achar que ela crescia junto comigo. Cada rua, prédio, viela e equipamentos públicos representavam para mim um mapa de tesouros a descobrir: eram trilhas por diferentes tribos e isso servia de estímulo.
As ruas sinuosas e sem planejamento sempre foram desafios aos que por ela passam: tradição mantida deste os tempos de tropeiros e bandeirantes, mas que sempre foram para uma nativa um meio de fugir de imensos congestionamentos. As ruas tinham significado, alma, histórias. Bastava chegar até elas que todo o repertório de memórias eram acionados. Odores, sabores, cores me enchiam de recordações e isso era mesmo muito bom.

À medida que o tempo passou fraturas começaram a se fazer. Talvez tenhamos nos perdido nos excessos: gentes densamente amontadas em espaços exíguos foram tornando espaços antes tão agradáveis e estimulantes e locais que deixei de reconhecer como os que me acompanharam por toda a minha adolescência.

As sombras de prédios cada vez mais altos foram trazendo sombras e compartimentos. Cada vez menores, as vidas começaram a se miniaturizar, os espaços de convivência quase sempre se transformaram em estacionamentos, cinemas em igrejas, praças em ocupação para consumo de drogas, o verde foi desaparecendo na mesma velocidade que o asfalto e as vias se entupiam de latas sobre rodas, as livrarias foram paulatinamente dando lugar à venda de eletrônicos e quinquilharias sem valor agregado quase que algum.

Os relógios parados às portas de grandes magazines mostram que o tempo não volta, também não marcam mais as horas das sirenas, das entradas e saídas de fábricas, construções ou comércios. As portas fechadas às centenas nos apresentam apenas portas pichadas no aço escurecido de fuligem e poeira.

E assim, pouco a pouco fui sentindo que perdi a cidade em que nasci. Já não a reconheço como minha. Completamente gentrificada expulsa para longe os que são seus filhos e acomoda o capital como uma nuvem de gafanhotos, que muito em breve a abandonará e seguirá para o próximo ponto de destruição.

Infelizmente todo este processo autofágico foi mudando completamente minha perspectiva e olhar.
São Paulo não é mais aquela que eu via, vivia e sentia. Perdeu-se em algum momento da minha existência.

O olhar, hoje mais distante construído por muitos deslocamentos, idas, vindas e desapegos me obriga a vê-la de outra maneira.
Hoje ela está resignificada por mim.
Neste novo olhar detecto:

Praça Carlos Gomes – SP

Sampa agoniza…
Sinto-a como uma Velha Senhora que está morrendo. E morre, não em seu momento de glória e vigor.
Deixa a cena de forma triste… é um corpo obeso que se movimenta com dificuldade: excedeu em muito suas capacidades de acomodar seus volumes imensos.

Suas artérias estão obstruídos e doentes. Não lhe faltam pontos de congestionamentos, deterioração, cicatrizes…
Seu pulmão falha, e quase não respira. Falta-lhe oxigenação. O cinza toma conta do ar que a alimenta. 
Seu coração é o mesmo (um centro doente e volumoso) que já não acomoda e nem irriga suficientemente suas extremidades. Muitas partes sofrem a gangrena da pobreza extremada, da violência e de todo o conjunto que a miséria humana consegue patrocinar. O coração que antes batia forte hoje arfa com dificuldades de dar pulsação e ritmo ao que está distante.

Seus intestinos param dia a dia de funcionar. Os dejetos paralisam funções e não fluem como deveriam: seus córregos, rios e esgotos são apenas um caldo de abandono e descaso. Em vez de vida pulsando e se movimentando, o que há são vestígios dos restos: que se avolumam como indesejáveis e inservíveis. 

A visão turva, opaca e sem brilho lhe impede de enxergar a lucidez que antes via em fachadas, arquiteturas… as cataratas do tempo lhe tiraram a beleza límpida de cores, vistas e formas. É como se apenas silhuetas borrassem seus sentidos. A paisagem que avista é apenas uma sombra triste de um tempo áureo que se foi. A vanguarda arquitetônica é susbstituída por ruínas ou bota-a-baixo todo o tempo… clareiras de cimento se abrem para serem transformadas em áreas de estacionamento ou prédios que massificam e acumulam pessoas em cubículos sem graça.

A Velha Senhora hoje vive de memórias retrógradas cozinhadas em banho-maria pelo abandono. O espelho mostra o quanto os anos lhe marcaram e trouxeram desgaste e imobilidade. Não se identifica com o reflexo no espelho. Nem mesmo nas suas velhas fotografias.

Suas vestimentas e ornatos estão puídos, largados, sujos… Não possui mais bens de valor e seus adornos quase não existem mais. Expropriadas por tudo e todos. Viu na passagem do tempo suas edificações e  equipamentos urbanos ser diuturnamente roubados, quebrados, destruídos.

Já não ouve tão bem: os sons são muitos e lhe sobram apenas ruídos sem nexo. Muito barulho e quase nenhuma nitidez.
E apesar de toda a velhice e decadência, ainda chegam-lhe, ávidos, os que buscam as imagens de seu passado.
Triste confronto a todos, pois no espelho só há uma projeção disforme… de uma passado que se foi…nada além…

__________________
* Versão revista e atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

** Posts Relacionados:
Por ruas e cruzamentos numa Pauliceia desvairada
Museus: Faces e Fases de uma Metrópole
♫ ♪ ♫ Tomara que chova…3 dias sem parar ♫ ♪ ♫
A casa que habito
Tempo: Valioso e Essencial



***
Siga-nos: 
No LinkedIn
No Pinterest

© 2021 ER Consultoria em Gestão de Informação e Memória Institucional
Todos os direitos reservados
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998).

Arquitetura e Literatura: uma escrita sempre possível

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Por muitas vezes a cidade emprestou à literatura cenários para seus escritos. É no espaço destas que enredos podem ser criados, personagens transitam e se relacionam. Ao mesmo tempo, a cidade é palco de relações e tensões que podem trazer à escritos dimensões diversas de perspectivas.  

A proposta aqui é aliar todos os interesses acima com um passeio ficcional por imagens escritas e pintadas de cidades e personagens inusitados. 

Serão duas trilhas que te levarão por diferentes construções imagéticas, arquitetônicas e visões de mundo de cidades. 

Labirintos de possibilidades do olhar.  

City #8: Vaddooi (David F): uma cidade autossustentável

A licença para abordar dessa maneira cidades vem de um italiano que nasceu em 1923. 
Ítalo Calvino é o seu nome. Seu argumento não poderia ser mais inusitado: o que contaria um mercador veneziano, o mais famoso de todos, a um imperador tártaro? Estamos falando de Marco Polo e suas descrições de cidades e aventuras do império mongol a Kublai Khan, estimada em torno do século XII. As descrições arquetípicas dão-nos vistas de cidades imaginárias e, portanto, invisíveis. 

O encontro que surpreende pela natureza do diálogo descritivo, traria à tona imagens e tons de 55 cidades pertencentes ao império tártaro, narradas e pintadas poeticamente pelo mercador ao imperador confinado e recluso em seu castelo, curioso por saber sobre quais eram as dimensões de seu império. 

E assim surgiam imagens caleidoscópicas de cidades e mundos…de vidas e relações urbanas.
Uma narrativa que coloca em causa que o urbano transcende em muito sua arquitetura e que são os habitantes e as relações que tecem com seu espaço que dão o sentido de cidade. É por isso que cada uma delas possui tantas características e peculiaridades que podemos dizer que possuem alma.

Referindo-se por exemplo a uma de suas cidades descritas a Kublai Khan, Marco Polo nos deixa saber a relação que tais cidades possuem com as Memórias. Em uma nota sobre a cidade de Zaíra lemos:

“(…) A cidade se embebe como uma esponja dessa onde que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras” (…).

Este olhar sobre as cidades é revelador, pois nos faz pensar que a cidade tem a sua escrita, e esta é dada por todas as intervenções que como cicatrizes vão se sobrepondo sobre seus solos e geografia. Todos os seus ângulos edificados, contornos de ruas, caminhos e construções falam dela e sobre as pessoas que a habitam.
Estranho pensar que a cidade imaginária de Zaíra tenha tanto a nos dizer sobre as nossas cidades. Nossas cidades também não contam sua história elas contém o seu passado a partir do que temos marcado em cada uma delas.

Pergunto-me o que fazemos quando as nossas cidades capitalistas ocidentais ganham caminhos autofágicos e simplesmente consomem o que existe de registros do passado. As novas edificações se sobrepõe às cicatrizes existentes e vão apagando por sobreposição. Somente permanecendo as camadas do tempo em suas construções.

Leônia é outra cidade interessante. É uma cidade que se refaz a si própria todos os dias. Se em outras cidades a relação se dá pelo que se esquece ou lembra, em Leônia a relação se dá com o que se joga fora. Se metaforicamente podemos pensar sobre valores e apegos, no campo material Leônia aproxima-se de uma concepção usual nas nossa cidades de que não temos que nos preocupar com o lixo que produzimos. Temos a falsa sensação de que tudo está novo e pronto se o passado for jogado fora. Vejam a descrição:

(…) Nas calçadas, envoltos em límpidos sacos plásticos, os restos de Leônia de ontem aguardam a carroça do lixeiro. (…) O certo é que os lixeiros são acolhidos como anjos e sua tarefa de remover os restos da existência do dia anterior é circundada de um respeitoso silencio, como um rito que inspira devoção, ou talvez apenas porque, uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém mais quer pensar nelas.(…)
O resultado é o seguinte: quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas do seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente em sua forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e de todos os dias e anos e lustros”.(…) A imundície de Leônia pouco a pouco invadiria o mundo se o imenso depósito de lixo não fosse comprimido, do lada de lá de sua cumeira, por depósitos de lixo de outras cidades que também repelem para longe montanhas de detritos. (…) Os confins entre cidades desconhecidas e inimigas ~soa bastiões infectados em que os detritos de uma e de outra escoram-se reciprocamente, superam-se, misturam-se. (…)


Marco Polo, tecendo um verdadeiro labirinto discursivo trazia magia e encantamento à cada cidade e suas características dispostas em blocos temáticos (as cidades e a memória, as cidades e o desejo, as cidades e os símbolos, as cidades delgadas, as cidades e as trocas, as cidades e os mortos, as cidades e o céu…). Todos perfilados com nomes e arquétipos femininos.

City #6: Uaeinn (Katie D): uma cidade de clones

A escrita às vezes, possui essa magia de “pintar” imagens e nos  transportar para elas, nas palavras de Claudio, nas “Cidades Invisíveis” de Calvino: “ser siderado é mesmo uma delícia!”. 

As cidades descritas ganhavam contornos por suas ruas, por suas linhas curvas ou retas circundando espaço e lugares, ou por ângulos que compunham ruelas e pontes ou enquadramentos dispostos por janelas, nos seus entalhes como cicatriz, nas suas pedras como mosaico.

A narrativa de Ítalo Calvino nos dá essa sensação de escrita fácil e fluída. Uma escrita construída a partir da concretude imaginativa de perspectivas e olhares. 
De todas as suas descrições, talvez você seja capaz de encontrar uma cidade para chamar de sua.
Experimente!
Descubra Calvino clicando aqui e passeie por ruas e construções de suas cidades invisíveis, descortinadas por um personagem único e sensível.  

Conheça e deixe-se encantar por Isaura, Cecília, Cloé, Zora, Adelma, Otávia, Fedora, Zoé, Olívia, Leandra, Eudóxia, Clarice, Leônia, Irene, Zaíra, Olinda, Raíssa, Teodora, Berenice, entre tantas outras. 
Mas se são de imagens que estamos falando, acrescento outras feitas como ilustração. 

City #4: Ukivy (Vicky D): as sementes em seu tempo

São as Cities of You onde imagens as imagens ficcionais de Calvino ganham tons oníricos.  O trabalho é de Brian Foo, artista e cientista da computação com um portfólio interessantíssimo. Segundo o próprio autor, seu trabalho:

“(…) se concentra em tornar os recursos públicos, como coleções audiovisuais, conjuntos de dados científicos e objetos culturais mais acessíveis e remixáveis ​​para o público em geral. Costumo fazer isso por meio de visualização, sonificação, imersão e brincadeira. Adoto uma abordagem pública ao meu trabalho, onde documente abertamente minhas decisões criativas e técnicas, bem como compartilho minhas ferramentas, software e recursos para que outros copiem, ampliem e adaptem.(…)”

Sendo assim, se permita perder-se nesse universo de imaginação e quase sonho. Sei que não se arrependerá.
Visite cada uma delas e faça um paralelo com o texto de Calvino.

Perder-se em uma cidade, como dizia Walter Benjamin, é também uma forma de se achar! 
Destarte escolha, se for capaz, uma delas para chamar de sua.
Enquanto isso minha votação sobre a ilustração de cidade e talvez sua relação com o espaço que aqui partilhamos vai para a City #1: Fraboo (Brian F), Otávia, suspensa em teias sobre um abismo. É uma das chamadas Cidade Delgadas.
Conheça-a:

Otávia: a cidade teia de aranha

Nas palavras de Calvino: 

“Essa é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e sustentáculo. Todo o resto, em vez de se elevar, está pendurado para baixo: escadas de corda, redes, casas em forma de saco, varais, terraços com forma de navetas, odres de água (…) trapézios e anéis para jogos, teleféricos, lampadários (…)Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Otávia é menos incerta que a de outras cidades. Sabem que a rede não resistirá mais que isso.”

A ideia dessa cidade em rede onde seus fios tecem a garantia de que nunca ninguém saia dali ou que pise em terra firme pode ser uma metáfora interessante…

Seria Otávia a cidade onde toda a rede virtual que nos prende, enlaça e aninha se encontra? Seriamos nós habitantes de uma Otávia no ciberespaço?
E qual é cidade para chamar de sua?

___________________
Posts relacionados:
Arquitetura tumular: a cidade dos mortos no mundo dos vivos
Nas ruas e nas redes: uma metodologia para análise da sociedade digital
Pelas Janelas do Confinamento
Patrimônio Arquitetônico: Preservar não é apenas Tombar!
Fotografia como Documento e Narrativas Possíveis
Escrita: palavra vincada

***
Siga-nos: 
No LinkedIn
No Pinterest

© 2021 ER Consultoria em Gestão de Informação e Memória Institucional
Todos os direitos reservados
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998).

♫ ♪ ♫ Tomara que chova…3 dias sem parar ♫ ♪ ♫

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Começo de ano sempre é tempo de Carnaval. Às vezes, pedimos coisas que quando os deuses nos ouvem há trabalho de montão.

Emilinha Borba fez uma das marchinhas mais cantadas nos carnavais de velhos tempos. Quer ouvir?

1950 – Emilinha Borba – Tomara Que Chova

♫ ♪ ♫

Tomara que chova

Tomara que chova
Três dias sem parar
Tomara que chova
Três dias sem parar

A minha grande mágoa
É lá em casa
Não ter água
Eu preciso me lavar

De promessa eu ando cheio
Quando eu conto a minha vida
Ninguém quer acreditar
Trabalho não me cansa
O que cansa é pensar
Que lá em casa não tem água
Nem pra cozinhar

Tomara que chova
Três dias sem parar
Tomara que chova
Três dias sem parar

A minha grande mágoa
É lá em casa
Não ter água
Eu preciso me lavar

De promessa eu ando cheio
Quando eu conto a minha vida
Ninguém quer acreditar

Trabalho não me cansa
O que cansa é pensar
Que lá em casa não tem água
Nem pra cozinhar

♫ ♪ ♫

Ás vezes no calorzão pedimos que venha a chuva… e no canto de Emilinha pedimos que seja como diz o refrão:

♫ ♪ ♫ Tomara que chova…3 dias sem parar ♫ ♪ ♫

Mas aí penso que não vai dar!
O que fazer com tanta água querendo entrar?
São as ruas que se enchem e ninguém podendo andar.
Jogado daqui pra lá é o lixo que insiste em voltar.

É tanto sofá, tanto colchão flutuando na correnteza e eu sem lugar seco para deitar.
Embalagens, frascos, latas flutuam num passeio de vai e vem.
E eu aqui parada tentando me salvar!
O gato já se foi, correndo para não se afogar.
Em meio a tanto entulho, frutas e legumes dançam desordenadas em meio a água das cheias que as teimam carregar.

A compra do mês embolorou e a roupa estragou.
Com tanta água suja nada se salvou.
Ir trabalhar não vai dar não: o transporte não vai funcionar.
O ônibus não vai chegar, o metrô vai parar e o trem vai encrencar.
Os carnês ainda estarão molhados quando for pagar, mesmo que a geladeira e o fogão tenham saído para boiar.

Agora é esperar toda água abaixar.
Tem muita lama para arrastar, e o que sobrou para limpar.
E torcer para que na próxima menos lama venha me encontrar.

Tanta água na rua e a minha torneira seca sem pingar!
Sem água para beber, para limpar, ou cozinhar.
Em breve vai chegar minha conta d’água para pagar.
É certeza que irão me acusar de ter gasto toda a água que ainda vai faltar!

Pensando bem, talvez seja melhor não chover 3 dias sem parar!

_______________
* Post atualizado de texto publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

** Posts Relacionados:
Por ruas e cruzamentos numa Pauliceia desvairada
Museus: Faces e Fases de uma Metrópole
Chamem o carteiro: preciso de boas notícias!

*** Saiba mais sobre as enchentes de São Paulo

****Siga-nos:
No LinkedIn
No Pinterest

© 2021 ER Consultoria em Gestão de Informação e Memória Institucional
Todos os direitos reservados
A reprodução não autorizada desta publicação bem como apropriação intelectual, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais. (Lei nº 9.610/1998)

Por ruas e cruzamentos numa Pauliceia desvairada

Por: Eliana Rezende Bethancourt

A maior metrópole do Brasil é famosa por seus congestionamentos que em determinados dias chegam a mais 350 Km. Um fato que não é novo e que revela uma cidade pulsante, com um ritmo acelerado.
Em dias recentes um debate intenso se colocou quando o Prefeito da cidade decidiu para o bem da diminuição de acidentes reduzir a velocidade nas marginais. Em pouquíssimo tempo uma onda de descontentamento se fez.

Em verdade, a cidade sempre conviveu com muitos e graves acidentes. A maioria quando ainda eram usadas apenas carroças.

Viaje comigo pelo tempo e percorra esta Pauliceia, que desde sempre parecia aos seus moradores como completamente desvairada:

Tal como outras capitais do mundo em fins do século XIX e nos princípios do século XX, São Paulo também via sua vida urbana crescer e se modificar. Assistia atônita uma gama imensa de transformações nos hábitos de vida, modos de produção e formas de deslocamentos e adensamento populacional.

As ruas da Pauliceia encontrava por parte dos que a administravam problemas de todas as ordens e constantemente eram alvo de acalorados discursos realizados na Câmara Municipal ou mesmo na imprensa diária, onde os problemas urbanos ganhavam o tom de reivindicações populares ou mesmo de críticas aos poderes constituídos.

São Paulo convivia com um aumento indiscriminado de sua população. Tal aumento, originário desde os tempos logo após a abolição da escravatura – que lançou nas ruas escravos forros e libertos – ao mesmo tempo recebia nas mesmas ruas aqueles que iriam prosseguir realizando o trabalho dos escravos: que eram imigrantes. Os italianos chegaram inicialmente, seguidos de outras etnias e nacionalidades que chegavam em levas da Europa.

Com tantos circulando pelas ruas da cidade o burburinho aumentava, e o ritmo de vida se acelerava, gerando cada vez mais políticas que visavam regulamentar os espaços, gestos e modos de viver a urbanidade, eram denominados códigos de postura. Temas como o trânsito e o barulho na cidade eram tratados periodicamente, e em muitos casos, era patente a tentativa de inclusão do maior número possível de situações passíveis de punição e regulamentação.

Os sons que vinham desta vida urbana eram muitos e variados. Daí que os que estavam interessados em elencá-los tinham lá uma tarefa bem grande. A imprensa em geral colaborava neste sentido, e com certa frequência publicava artigos como o Dr. J. M. de Azevedo Marques, intitulado “A tranquilidade publica perante a Municipalidade”, onde o autor fazia menção a alguns destes sons da vida urbana:

(…) Há dias passados um illustre scientista extrangeiro queixava-se, pela imprensa, com razăo e escarneo, de ser S. Paulo uma cidade insupportavelmente barulhente alludindo ao ruido exaggerado dos bondes, dos automoveis, dos sinos, dos vendedores de jornaes, dos caixeiros de cafés, da cachorrada a uivar, dos pregoeiros ambulantes ensurdecendo, atordoando, causando mau humor, impedindo o repouso, socego, a saude e o trabalho.

(…) Que diferença contra nós, si compararmos isso com o que vimos nas cidades mais agitadas do velho mundo: Londres, Paris, Berlim Bruxelas, Lucerna, Genebra, Vichy (…), onde tudo se passa calmamente, em relativo silencio: os vehiculos năo incommodam pelos ruidos, os sinos săo raros e commedidos, os automoveis fazem “chic” em năo buzinar, ninguem grita, năo há guizos estridentes; e por isso, alli se pode conversar nas ruas, nos cafés, nos vehiculos, nos escriptorios, como se pode repousar, dormir, viver.
(…) Aqui impossível. (…)”[1]

Como sempre a comparação depreciativa tomava como parâmetro o Velho Continente (modelo buscado como referência de civilidade). O articulista ocupa-se de tecer as comparações procurando mostrar quão distante São Paulo estava de cidades e civilizações europeias.

Alguns destes sons vinham de diferentes meios de transporte, personagens urbanos, ambulantes e seus pregões, feitos para chamar atenção ao seu trabalho, ou mesmo de animais que trafegavam soltos por ruas, ruelas e avenidas.

Dentre os instrumentos mais comuns estavam entre outros: o uso de sinos, campainhas além da própria voz do mercador em portas de teatros, praças, e mesmo de porta em porta.

AV. XV de Novembro, São Paulo – década de 1920

O artigo prosseguia em sua minuciosa descrição e se tornava interessante quando se referindo ao trânsito, relacionava a convivência com determinados aspectos do comportamento urbano com a ausência de moral. Ou seja, quanto mais imoral e próximo da barbárie a desqualificação moral mais suscetível ao hábito de sons que perturbavam a ordem alheia. Observe:

“(…) Há é certo, uma parte do povo que se não incommoda com tudo isso; são os insensíveis, os pandegos, os endurecidos e, podiamos dizer, os idiotas, cujas funcções meramente physiologicas e impertubaveis predominam sempre sobre as moraes; comem e bebem sempre bem, dormem sempre bem, riem sempre bem, vagam sempre bem, passam sempre bem, como si o mundo fora só elles. Mas essa minoria de “homens-vegetaes” não merece dictar regras ou servir de padrão aos outros, ás senhoras, ás crianças, aos velhos, aos doentes, aos trabalhadores, aos estudiosos aos sensiveis, aos civilizados. (…)”[2] 

Ritmos e deslocamentos: a cidade veloz

Este mesmo trânsito, considerado caótico, era o centro de duras críticas e revelava um articulista preocupado. Referindo-se ao barulho e a forma descuidada que muitos veículos eram conduzidos e os resultados em números de acidentes, acrescentava:

“(…) A norma –  “é gritar e matar” – o bonde dispara, tocando os tympanos em selvagem Ze-Pereira, e vai esbarrando e esmagando, haja o que houver; o automovel faz a mesma cousa: e assim substitui-se a pericia pelo barulho, entendendo os heróes conductores que buzinando e badalando podem matar livres de culpa e pena. (…)”[3]

Os registros de acidentes de trânsito eram muitos e variados, incluindo batidas de automóveis em outros veículos, em postes ou em outras formas de obstáculos, bondes que se chocavam ou saíam dos trilhos, e atropelamentos – em geral, eram a maioria das ocorrências policiais. Saber sobre tais registros também nos fornecem ao mesmo tempo sobre esta cidade. Relava que havia um número crescente de pessoas circulando pelas ruas e experimentando uma nova forma de vivência: relacionada aos ritmos da velocidade e das deslocações pelo espaço social. Algo que até então não era possível sem as invenções como automóveis, bondes e trens. A convivência com a maior velocidade era algo intrigante, pois se de um lado favorecia deslocamentos para lugares impensáveis em curto espaço de tempo, por outro lado, mostrava que ainda era difícil lidar com atropelamentos, descidas acidentadas de bondes e mesmo dividir o espaço da rua com pedestres, cavalos, carroças, carros, bondes e condutores.

Bonde 41 saiu dos trilhos na rua Carandaí, esquina com a antiga rua Inhaúma, entrando no terreno da Sociedade Amigos da Casa Verde

Os relatos de tais ocorrências em vários casos transformavam-se em inquéritos policiais redigidos por delegados responsáveis nas diferentes circunscrições, tornava-se uma espécie de crônica policial sobre os problemas relacionados ao trânsito da cidade. Uma leitura atenta destes registros nos ajuda a perceber como esta cidade se movimentava e se relacionava com seu entorno, ao mesmo tempo que novos hábitos se instalavam.

Carlos Pimenta, Delegado da 5ª Circunscrição em São Paulo, é um destes que chamo de ‘cronistas policiais’. Sua escrita miúda, recheada de pequenos detalhes ajuda a dar cor e tom às impressões de uma autoridade sobre diferentes infrações ocorridas no espaço da cidade, tentando da melhor forma encontrar argumentos que viessem convencer de culpa ou absolvição as partes envolvidas. São relatos envolvendo crimes de diferentes ordens, em especial os que são relacionados a moral e bons costumes (inserem-se aí os crimes de vadiagem, prostituição, jogo, defloramentos, homicídios, entre outros) além claro, das infrações de trânsito.

Citando algumas destas infrações, o delegado Carlos Pimenta comenta sobre os atropelamentos e a forma considerada descuidada de motorneiros e passageiros conduzirem e se portarem nos veículos que transitavam pela cidade:

“(…) Trata este inquerito da eterna questão dos atropellamentos por vehiculos. Enquanto tivermos leis benignas para o caso, os taes senhores condutores, chaffeurs e cocheiros andarão sempre sem o necessario cuidado, á matroca, a catar as pernas de um pobre mortal, ou mandal-o sem demora para outro mundo (…)”[4]

No caso específico deste inquérito, Carlos Pimenta retomava a questão da ausência de uma lei de trânsito que viesse atender de perto a necessidade de punir eficientemente infratores perigosos. A tônica sobre as leis de trânsito era constante, e em sua fala mais de uma oportunidade retomava este tema, em especial em relação ao número elevado de acidentes envolvendo atropelamentos e/ou imprudência da parte de motorneiros, condutores, passageiros e pedestres.
São os casos, por exemplo, dos seguintes inquéritos:

1)      “(…) É um eterno problema a questão de desastre por automoveis e dia a dia os atropelamentos vão crescendo de modo assustador. Este inquérito trata de mais um, cuja victima é o menor Antonio de Toledo, com 6 annos de idade (…) O automovel que apanhou o menor tinha o nº 2950 e (…) o auto caminhava com marcha acelerada e com pharóes apagados (…)”[5]

2)     “(…) O veso antigo de todos os conductores de vehiculos, nesta Capital, andarem em vertiginosa carreira, procurando a morte para si e para os outros, é coisa que lhes póde tirar. São multados, processados, castigados, afinal dentro de nossas benignas leis e dos nossos liberrimos regulamentos. Mas a attração, a sympatia pela vertigem de corrêr é inevitável. (…) Devido a essa loucura, ou melhor, essa falta de prudencia, este inquerito registra um desastre desta natureza. No dia 10 do corrente, Segunda feira, ás 21 horas, o bonde de passageiros nº 423, na linha Tamandaré, tendo como conductor Abilio Pires, chapa nº 476 e como motorneiro Manoel de Moraes, chapa nº 877, ao fazer a curva da rua Castro Alves para entrar na rua acima referida, por imprudencia absoluta do alludido motorneiro, saltou dos trilhos, subindo no passeio, ficando as primeiras rodas sobre o mesmo (…)”[6]

Carlos Pimenta se coloca como mais um dos que criticavam as leis em vigência na capital e a forma considerada branda de tratamento dos infratores em geral. Em diferentes circunstâncias se refere às leis de trânsito como sendo benignas demais para serem respeitadas.

Além da velocidade e descuido dos condutores de veículos, os inquéritos nos fazem saber sobre a imprudência cometida pelos que trafegavam nas ruas. Um destes refere-se especificamente a distração e ao hábito sempre corrente de saltar dos bondes quando estes ainda estavam em movimento:

“(…) ás 21 horas, João Rebulhedo, que guiava o automovel nº 4016 pela Avenida Brigadeiro Luiz Antonio com destino á Avenida Paulista, seguia atraz de um bond da linha Paraizo quando, perto da rua Conselheiro Ramalho, o conductor Daniel Paes, que se achava de folga viajando neste bond, ao descer delle, em movimento, foi apanhar e ferir este conductor (…)

(…) João Rebulhedo explica em suas declarações que seguia o bond numa distancia de dois metros quando, inesperadamente, saltou delle esse conductor de folga. Sem tempo de evitar o desastre, pois Daniel, ao descer, lhe passou á frente – conseguiu ainda evitar sua morte, com a monobra rapida que fez. (…)”[7]

A prática de saltar dos bondes quando estes ainda estavam em movimento, além da travessia imprudente de pedestres acabaria por levar diferentes propostas à Câmara de vereadores de São Paulo sobre a aplicação de multas. Dentre alguns destes projetos temos, por exemplo:

“(…) Não existe, entre nós, a regulamentação do transito de pedestres. Essa falha é absurda, tanto quanto, no meu entender, essa regulamentação é o ponto de partida para uma boa legislação que venha resolver esse problema. (…) em Londres, (…) qualquer pessoa que atravessar uma rua em momento improprio, não pagará sómente multa; será presa immediatamente.E, si essa imprudencia der origem a um desastre, responderá pela parte dos dannos que provocar (…)”[8]

Abaixo uma imagem no Largo de São Bento, onde é nítido o movimento de subir e descer dos passageiros com os bondes em movimento. Além disso, transeuntes, carros e bondes compartilham o mesmo espaço exíguo, gerando aos pedestres inúmeras chances de atropelamentos quer por um quer por outro.

Bonde elétrico aberto no Largo de São Bento, na capital paulista, por volta de 1930, circulando na linha de São Caetano (criada em 1902 e extinta em 1942)

NO calor das discussões diferentes sugestões surgiam para um problema que não conseguiu no decorrer do tempo uma solução satisfatória.
Prova disso é que já estamos no século XXI e enfrentamos praticamente as mesmas questões, criticas e ponderações.

Destas ocorrências há diferentes registros fotográficos detalhados pela perícia técnica e interessante quanto ao fornecimento dos tipos de acidentes[9], ruas de maiores incidências, e assim por diante.
As imagens tomadas como documentação para incorporar o inquérito revelavam em detalhes a forma como o acidente havia ocorrido: em alguns casos, estas fotografias recebiam anotações em vermelho indicando a trajetória do veículo até encontrar o seu destino contra um poste, um muro ou mesmo outro veículo. As rotinas de acidentes acabaram por instituir uma prática de registros fotográficos para os acidentes que ocorriam pela cidade e revelam mais uma aplicação da fotografia para fins comprobatórios e jurídicos. 

Acidente com o bonde Casa Verde – Penha (55) na rua Japuiba com rua Anhauma (atual rua Antônio Lopes Marin com rua Dr. César Castiglioni Júnior

A lei determinava as velocidades máximas dos veículos motorizados.

Nos termos da lei: “(…) no perímetro central, em ruas e horas de grande transito, dez quilometros e nas demais, vinte quilometros, no perimetro urbano, trinta quilometros e, no suburbano, quarenta quilometros (…)”]10

As velocidades acima descritas procuravam através de uma regulamentação criar formas de diminuir os problemas ligados às altas velocidades dos carros, como batidas e atropelamentos muito correntes no período. Os espaços de regulação e tráfego colocaram à cidade muitos debates e o consenso nunca foi obtido. 

Distantes no tempo e próximos na dificuldade, temos a Prefeitura de São Paulo sempre alterando limites de velocidade nas marginais alegando exatamente os mesmos problemas de mais de um século atrás: excesso de velocidade, acidentes e atropelamentos. 

De fato, uma relação de poderes e fascínios entre homens, máquinas e leis. Nem sempre conseguem andar juntas e em benefícios de todos. 

*
Post extraído de minha Tese de Doutorado, intitulada: “Imagens de cidade : cliches em foco… São Paulo e Lisboa (1900-1928)“, defendida na UNICAMP, em 2002.

** Referências:
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade”. Anais do Museu Paulista [online]. 2007, vol.15, n.1, pp.115-186. ISSN 0101-4714. 

***Notas Bibliográficas:

[1] Marques, J. M. Azevedo. “A tranquillidade publica perante a Municipalidade”. In: Jornal O Commércio de S. Paulo, 29/04/1914.[2] Idem.
[3] Ibidem.
[4] Inquérito redigido por Carlos Pimenta, Delegado da 5ª Circunscrição de São Paulo, em 16.08.1922.
[5] Idem.
[6] Ibidem.
[7] Inquérito redigido por Armando Soares Cayuby, Delegado da 6ª circunscrição, em 08.02.1922
[8] Projecto nº 3, de 1924. Coleção Actos e Decretos do Municipio.
[9] Os registros fazem parte da coleção existente nos Arquivos do Museu do Crime, da Academia da Civil  de São Paulo.  
[10]  Lei nº 2.264, de 13 de Fevereiro de 1920. Coleção Actos e Decretos do Municipio.

****Posts Relacionados:
Arquitetura tumular: a cidade dos mortos no mundo dos vivos
Museus: Faces e Fases de uma Metrópole
Patrimônio Arquitetônico: Preservar não é apenas Tombar!

*****Siga-nos:
No LinkedIn
No Pinterest

© 2021 ER Consultoria em Gestão de Informação e Memória Institucional
Todos os direitos reservados
A reprodução não autorizada desta publicação bem como apropriação intelectual, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais. (Lei nº 9.610/1998)

Arquitetura tumular: a cidade dos mortos no mundo dos vivos

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Há muitas formas de visitar a morte.
Às vezes, a visitamos pela experiência sofrida assistindo a debilidade que avança, os dias que chegam ou o convívio com uma sentença de morte provocada por uma doença sem cura, ou um acidente que ceifa vidas e planos.
A experiência sentida para todos estes casos é a da perda ou dor. Paira sobre nossas mentes e nos faz saber que, mesmo em sua ausência, sua presença pode ser constante enquanto não chegar.
Seu lugar em nossas vidas está também nos espaços que ocupa. Espaços simbólicos, emocionais ou físicos, não importam. Os tempos e espaços destinados para a morte em nossas vidas ocupam nossos corpos, mentes e até mesmo lugares específicos para seu culto/lembrança.

Dentre os lugares de morte o cemitério talvez seja o de maior representatividade no mundo. E aqui, independente de culturas ocidentais ou orientais é um espaço do Sagrado e de reverência ao que ele guarda. 

Os cemitérios são exatamente o local, e a cidade dos mortos, no mundo dos vivos. 
Representam esta cidade que está calada e desenhada, porém viva como um recado, uma lembrança, um alerta. É arquitetura esquadrinhada, que possui seus lugares e hierarquias e até mesmo imposição de posições sociais, prestígio, status e valores que podem ser observados através de todo um conjunto de símbolos que chamamos de arquitetura tumular. Exemplos não faltam de elementos desta arquitetura de vivos para o mundos dos mortos, e neste ponto apresento alguns destes elementos que utilizamos como estudo na área que denominamos em História de Cultura Material.
Os jazigos, seus túmulos e toda a referência mobiliária e de objetos prestam-se a um excelente meio de análise e abordagem de um tempo: oferecem ao pesquisador referências interessantíssimas e muitas vezes ausentes em outros tipos de fontes como: nomes, datas de nascimento e morte, preferências sociais, culturais e relações familiares trazidas por meio de dedicatórias e despedidas onde os nomes e laços de parentescos ficam expostos.
Convertem-se em acervos “vivos” da Memória de um tempo e das vidas de seus ocupantes, os seus laços e suas relações.

Há todo um conjunto de signos iconológicos que favorecem a interpretação sobre o período de sua produção e em qual contexto social e cultural foi utilizado como representação. Em tempos mais recentes as fotografias surgem como outro elemento carregando mais informações sobre o morto. Sua fisionomia, e em alguns casos, sua sisudez ou sorriso nos desafiam o olhar. Fixados num determinado espaço/tempo nos dirigem o olhar,  nos inquirem… Recortados em um contexto são imagem cristalizada de um projeto que se interrompeu. A imagem, por excluir a morte, é carregada de vida e energia. Talvez por isso, tenhamos a empatia do olhar que se comunica e troca. É impossível não pensar sobre aquele rosto, a história que tinha e como chegou ali: alguns muito cedo, outros após uma existência plena com cônjuges, filhos, netos e até bisnetos.
Englobam-se no que chamamos arquitetura tumular a arte representada pelas esculturas que ornamentam os túmulos. Representam visões de mundo de um tempo, de uma sociedade, de grupos familiares e pessoas, fornecem elementos caros à construção de uma memória de si e do seu entorno social. Um conjunto rico, e muitas vezes valiosíssimo de expressão artística, fazendo muitos cemitérios ter programas de visitas guiadas por seus túmulos para amantes desta arte ou para acadêmicos de diferentes áreas.

Muito interessante entender que os cemitérios, tal como as cidades tem uma história de implantação e definição tanto estética quanto dos seu lugares e limites no tecido urbano. Não surgem espontaneamente, e são sim fruto de um projeto social para estar inserido no mundo dos vivos.

Por isso, é preciso entender as circunstância em que os cemitérios foram se secularizando. O espaço destinado aos mortos era sempre um local de proximidade: eram colocados, por exemplo, nos terrenos em volta das casas, ou nos espaços considerados sagrados das igrejas e seu entorno. Isso propiciava a proximidade e alguma privacidade a estes corpos abandonados pela vida, ceifados por diferentes motivos. A secularização dos cemitérios levou estes corpos a compor um outro espaço só que desta feita coletivo. Os mortos seguem assim um destino comum reservado a todos e longe das casas e seus quintais que os abrigaram por toda vida. Neste local, o espaço da morte é definido e demarcado para estar nas bordas das cidades e a partir de uma concepção higienista de sociedade, onde a doença e a morte precisam ser isoladas e retiradas do convívio familiar. Experimentar a doença e morte deixa de ser um ato corriqueiro e familiar (algo que até então era usual e costumeiro) e começa a possuir espaços definidos para isolar, cuidar e quando não for mais possível, enterrar. A doença, a dor e a morte eram assim levadas para outros territórios. São territórios da morte.

Os túmulos de uma mulher católica e seu marido protestante, que não puderam ser enterrados juntos devido aos regulamentos do cemitério. Eles morreram na década de 1880.
Nota: as mãos segurando sobre a parede divisória. Localizada em Roermond, Holanda.
Por: Lindsey Fitzharris

Uma cidade aprisionada
A sociedade deste período (e falamos em algo a partir do século XVII e XVIII, com maior incidência a partir do século XIX) passa a ter diferentes instituições que procuravam isolar, controlar e disciplinar. É deste período que vemos o surgimentos de instituições como quartéis, conventos, escolas, manicômios, hospitais e porque não cemitérios?! A lógica para todos os casos é sempre a mesma: murar, cercar e facilitar a vigilância fornecendo espaços esquadrinhados, milimetricamente individualizados, entradas e saídas quase que exclusivas e horários rígidos para trânsito e permanência. A individualidade garantida é a do próprio corpo que ocupa celas, cadeiras, camas ou para nosso caso, o jazigo, a sepultura.

Para os cemitérios, a ordem de fechamento, que se mantém até os dias de hoje, revela a nítida separação entre o simbólico: Luz e Sombras, que remete ao perigo das almas que habitam o “mundo subterrâneo e escondido das profundezas”. Não devendo por isso, comunicar-se com o mundo dos vivos no período onde reinam as Trevas.

Esta cidade dos mortos a que nos referimos acima recebe dos vivos, em seus primeiros séculos, consideráveis investimentos: a morte e os sentimentos em relação a ela precisavam ser mostrados por meio de mausoléus ricos em detalhes, com muitos acessórios e peças vindas da Europa. Artistas, escultores e artífices da morte eram contratados para entalhar detalhes de vida e personalidade do morto em pedras, mármores, granitos. materiais que pela dureza e durabilidade remetiam à Eternidade, Permanência, Presença do Ausente.

À medida que a sociedade sofre a perda do poder aquisitivo, os túmulos deixam de ser locais de ostentação e a arquitetura tumular parece empobrecer. É o período de popularização de cruzes, sem a riqueza escatológica de períodos anteriores. A cor predominante continuava sendo o branco. Mas o investimento na morte se reduz enormemente.

Em períodos de maior opulência, como entre os anos 1900 e 1930 no Brasil, a morte passa a ser vista como um grande espetáculo e momento onde se pode mostrar a força e o poder.

Com isso toda uma produção artística atende esta população endinheirada e opulenta das cidades que se metropolizam. As cruzes passam a ser paulatinamente substituídas por crucifixos.
Tal como a cidade extra-muros, não há homogeneidade entre seus ocupantes. Riqueza e poder possuem elementos explícitos de ostentação. Daí a riqueza que estes elementos oferecem como território de análise para construções mentais, sociais e culturais. É um território de representações, sem dúvida! Mas tais construções iam além: os cemitérios podiam segregar não apenas por seu mobiliário e posição social. Desde o passado remoto, os mortos poderiam ser incluídos ou excluídos a partir de seus dotes ou preferências espirituais. Quanto mais considerados próximos da Divindade mais próximos poderiam ser enterrados dos templos e locais de adoração. Em tempos mais recentes os cemitérios criaram a segregação religiosa. E assim protestantes não podiam ser enterrados em cemitérios cristãos, suicidas não podiam ser enterrados em solo cristão, nem mulçumanos em cemitérios não-mulçumanos e assim sucessivamente. A morte e seus corpos carregavam o estigma espiritual de suas opções e escolhas feitas em vida. 

Ter em mente todos os elementos citados acima não significa esquecer-se de outras dimensões.
Passear por suas Alamedas propicia um silêncio e um contato com o tempo de histórias que já se foram, personagens petrificados em sorrisos de fotografias, em frases nas placas com datas, locais de nascimento, dedicatórias, epitáfios ou mesmo frases avulsas que sintetizam  pensamentos e ideias dos que foram ou dos que ficam. A comunicação entre vivos com seus mortos e dos mortos por meio de seus epitáfios são gravados em pedras e materiais de longa resistência como mármores, granitos. São assim um convite à permanência e resistência ao tempo e intempéries. Afinal ali estarão, imóveis… colocadas para resistir às muitas estações e gerações. Só farão sentido se assim forem e se assim conseguirem se manter frente à passagem do tempo por elas.

Estes escritos são, portanto, o registro do Tempo. São um mergulho de alma que nos remete a vidas que se passaram e relações que se entrelaçaram. Vínculos expostos publicamente num gesto final que pretende ser de resistência ao esquecimento.  Este território da morte perdido na cidade dos vivos é um território de transição: local de saudades de lembranças, abandonos, vidas que se deixam, vidas que permanecem.  Esta transitoriedade presente e calada nos faz pensar sobre permanência e imanência, e mostram a relação que seres humanos possuem entre si e com a sua representação de seus medos, suas inseguranças, esperanças e até fé.
Inevitável não pensar em alguns casos como o abandono chega e avança: delapidação, vandalismo, esquecimento, estão presentes em muitos destes locais.

Em outros lugares, ao contrário, somos levados a observar o cuidado com a lembrança personificada pela presença viva de flores e plantas. Afinal, estas servem para nos fazer lembrar que a vida possui seus ritmos, obedecem estações e estão em meio a esse tempo passado.

Os cemitérios, tanto como as cidades, envelhecem e até morrem. Deixam de ser territórios de lembrança, culto e devoção. Vencidos pelo tempo, muitos apenas deixam de existir. Outros, tal como muitas cidades ganham robustez com a passagem do tempo por meio dos personagens que ali tem seu destino final. Oferecem a todos o testemunho de um outro tempo e seguem sendo uma cidade de mortos no mundo dos vivos.
Paradoxal portanto, que este mergulho nesta cidade dos mortos, revela o quanto de vida pulsante existe em suas ruelas, quadras, muros e extra-muros. 

Os Mortos e o Luto em Tempos de Pandemia

Não poderia deixar de abordar o tratamento dado a morte e seus corpos em tempos de pandemia. 

A Pandemia de COVID19 trouxe ao mundo uma outra relação com todos os ritos relacionados aos mortos e seus parentes: desde os processos de isolamento no período crítico de internação, até sepultamentos sem velórios acompanhado por apenas uma ou duas pessoas. A experiência do luto deixa de ser restrito a um grupo familiar e ser compartilhado por cidades, países, continentes. A vivência da doença e morte é levada ao paciente como experiência solitária. A morte e sua materialização ocorrem em valas comuns ou sepulturas que se espalham pelos cemitérios aguardando caminhões frigoríficos e filas intermináveis de carros funerários. A morte ganha um status de linha de produção com excedentes de corpos insepultos.  Os corpos perdem o direito dos seus ritos: procedimentos de tanatopraxia (lavagem e preparo do corpo para o rito fúnebre) por exemplo, deixam de ser feitos. Os corpos possuem terão que passar por procedimentos de limpeza com produtos adequados, são embalados em plásticos com zíper e entregues para sepultamento em um caixão lacrado. Sem velórios, os corpos seguem para o sepultamento ou cremação acompanhados por no máximo quatro pessoas.
As despedidas comuns aos entes queridos deixam de ser possíveis, e em muito casos a pessoa que entra no hospital para isolamento nunca mais retornará. 

O Brasil, apesar de todo o negacionismo em relação às mortes, teve cemitérios lotados, covas rasas, retroescavadeiras, caminhões frigoríficos e até valas comuns! Tudo revelando a forma como a doença inesperada escancarou despreparos, desrespeitos e alguma negligência por parte de autoridades. Afinal, a cidade dos mortos pobres nas cidades dos vivos, significa invisibilidade constante. Os cemitérios apenas existem nas áreas periféricas para dar destino aos corpos que abandonam a vida por doenças e mortes violentas. Não cumprem uma função social de conforto, mas mais uma vez de exclusão e silêncio.  

Exemplar destas cenas são rapidamente localizadas, mas creio que dois cemitérios representaram muito bem o que foi a invasão de um inimigo oculto na vida das cidades. O cemitério de Manaus nos ofereceu cenas que serão icônicas do que significa improvisação e um estado acéfalo: valas comuns e retroescavadeiras.

Outro exemplo as imagens aérea do maior cemitério de São Paulo (Vila Formosa) com covas abertas antecipadamente aguardando seus mortos, que chegavam em filas de carros fúnebres. 
Sem ritos, túmulos ou cerimônias e despedidas, as cruzes brancas com números identificam os mortos em valas estreitas e rasas. Uma explosão demográfica na cidade dos mortos: crescimento desordenado, sem planejamento, vias de acesso ou quadras…

O espaço, que em uma configuração planejada seria de uma determinada dimensão tem as sepulturas delimitadas por madeiras para separar o espaço mínimo entre os corpos e sua urna. Tal a quantidade de corpos perfilados.  

O tempo ainda nos mostrará com maior amplitude as cicatrizes nos tecidos destes solos, sagrados para alguns, e suas consequências na forma de entender este processo de mortes coletivas e a lida com o luto. De concreto temos é um novo espaço criado pela pandemia nas áreas periféricas de todas as cidades: um espaço que não mais apresenta uma arquitetura tumular, mas simplesmente caminhos perfilados de caixões, justapostos lado-a-lado. 

A desigualdade se manterá entre ricos e pobres, já que para o caso dos endinheirados seus corpos serão depositados em seus mausoléus e túmulos de família. A escrita da pandemia nos cemitérios da cidade deixará seu desenho de exclusão e indiferença muito bem marcados. 
Não concluo, pois há uma pandemia em ação. Os corpos que deixa atrás de si contam trechos de muitas histórias. 

___________________________
Artigos relacionados:
Rezende, Eliana Almeida de Souza.  “Os historiadores e suas fontes em tempos de Web 2.0“. Publicado nos Cadernos do CEOM, ‘Documentos: da produção à historicidade”, Capa > v. 25, n. 36, Editora Argos, Chapecó, 20 (acessado em 01/11/2020)
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Ventres urbanos: cidades e sanitarismo“. Revista Ler História. Dossiê Guerras Civis, Lisboa. n. 51, 2006. pp 135-165 (acessado em 01/11/2020).
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade” (acessado em 01/11/2020)

**
Posts relacionados:
Fotografia como Documento e Narrativas Possíveis
Tempo: valioso e essencial
A morte nossa de cada dia
E se…
Ruídos do silêncio
Afinal, quem você pensa que é?
Nossa vida é nossa primeira ficção
Quero meus direitos!
Trincheira das palavras
A Boa Morte é a Arte de saber Viver

***Siga-me:
No LinkedIn

© 2021 ER Consultoria em Gestão de Informação e Memória Institucional
Todos os direitos reservados
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998).

Pelas Janelas do Confinamento

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Sempre gostei de pensar sobre como uma fotografia funciona a partir do enquadramento que o fotógrafo nos oferece. O fotógrafo hábil é aquele que consegue recortar e enfocar partes que deseja destacar ou omitir. O enquadramento revela ao mesmo tempo que esconde. No recorte dado pelo fotógrafo há o que se quer mostrar, e todo o resto compõe o que chamamos extra-quadro. Tudo o que não interessa ao olhar fotográfico é simplesmente silenciado pela ausência imagética. A forma de enquadramento e enfoque trará ao observador a sensação de que não falta absolutamente nada. Tudo está ali.

A mesma lógica pode ser usada a partir dos enquadramentos de nossas existências: o que pomos em relevo e o que simplesmente omitimos ou escondemos.

O mundo que nos cerca é um palco cenográfico, onde cenas são justapostas e ganham alguma relevância, enquanto outras ganham sombras e desimportância.

O período de isolamento social conseguiu oferecer a cada um de nós um ponto referencial de observância do mundo e de expressão por ela: nosso olhar, nossas janelas, varandas, portões.

De forma especial e totalmente inesperada, dada às convulsões sociais pelas quais passamos, nossas janelas transformaram-se em camarotes, ora para simplesmente observar, ora para aplaudir e se manifestar. Historicamente, estes espaços de vida privada não tinham comunicação direta com a rua, mas eram sempre vistas como forma de uma vista indireta e contemplativa. Lá fora a rua estava distante e a janela oferecia a possibilidade da vista privilegiada do interior para o exterior, mas não o contrário disso. A solidão contemplativa era garantida por vidraças, venezianas, cortinas. Todo um aparato para velar, esconder. Do outro lado da rua apenas um quadro pendurado na arquitetura velado por cores de um tecido feito para ser cortina e barreira.

Crédito: Lionel C. Bethancourt

A experiência do isolamento social estendeu uma pausa imensa em vidas, planos, existências. Esperar…esperar… passou a ser o empreendimento de todos. A mobilidade quase infinita, deslocamentos rápidos, migrações simplesmente foram freados. Emparedados, enquadrados e fechados… eis no que o mundo teve que se converter. O confinamento se colocou como questão de sobrevivência, e com isso imperou sobre nossas vontades.

Mas nem tudo precisava ser contido. Novos meios foram encontrados para resignificar nossas existências, descontentamentos, frustrações, bem como momentos de contentamento, alegria, gratidão.

Sob esta ótica que neste período de isolamento as janelas e varandas converteram-se em espaço de troca. Uma nova estética se pôs, o mundo do interior de nossas casas revelou-se. Houve aplausos, músicas tocadas ou cantadas, buzinaços, ‘panelaços’ e até projeções de imagens, protestos e palavras de ordem, irreverências e muito ativismo. As janelas ofereciam com isso, o espetáculo da presença, da vida, do brinde, da resistência, presença das ausências…da procura do Outro em todas às suas formas ou solidariedades de objetivos ou ameaças comuns. Eram coletivos na expressão geral, mas ao mesmo tempo anônimos em nossas individualidades. As interações nos davam uma identidade através de pautas e solidariedades comuns.

As trocas simbólicas decorrentes da impossibilidade dos contatos físicos surgiam de forma espontânea e quase viral. As janelas, convertidas em abertura para o mundo e não mais como uma tela, um quadro, um enquadramento para ver ou se esconder contemplativamente. Tornaram-se um espaço para o encontro, para a troca, para a conexão num mundo onde a conexão virtual não basta às emoções, onde as trocas podem ser feitas de formas mais intensas e interativas. A criatividade encontrou muitas formas de manifestação: foram brindes, cantos, palmas, cores, apresentações musicais várias. A janela abria-se para o mundo e convertia-se em passagem/exposição. É estranho pensar nisso, já que parecia ser ponto pacífico que as pessoas estavam muito satisfeitas com suas redes sociais e contatos virtuais. Mas a ausência das ruas e seus espaços sociais de trocas e vivência mostraram o quanto ainda precisamos de tudo isso.

O mesmo se dá com a ocupação do espaço urbano/social: as projeções tão em voga, em especial na cidade de São Paulo revelavam isso de forma fantástica: imagens se projetavam de forma gigante em outros prédios que também se manifestavam. Uma estética diversa de resistência, ocupação e projeção digital e real no Outro os seus desejos e frustrações. O espaço social ganhava outra dimensão a partir do enquadramento/exposição nas janelas e varandas das cidades. A projeção encontrava na arquitetura bruta de fachadas e concreto a tela perfeita para funcionar como retrato e exposição. Sem circundar ou limitar a aparição a imagem extrapolava os limites construtivos e podia espalhar-se por outros prédios. Um diálogo interessantíssimo de desejos, vontades, protestos e “gritos” de silêncio povoado apenas pelas imagens. A imagem neste sentido era única, mas as vozes que a acompanhavam eram coletivas, deixavam de ser o indivíduo para ser o condomínio, o bairro, a cidade…o país.

Daí o sentido de ocupação do espaço urbano como campo de lutas e resistência. De reivindicações e protestos, de solidariedades…

Mas e aquela tão presente e às vezes inacessível “janelas da alma?”. Creio que aqui foi o ponto onde muitos definitivamente tiveram muitos problemas com o isolamento social. O confinamento levou muitos a ter que recolher-se para seu interior e ver o que habitava em suas janelas interiores. O contato com esta alma habitante, para alguns, foi carregada de percalços: conviver com o universo interior pode ser muito difícil. Longe das vozes externas que nos tiram a concentração e distraem, as vozes da alma podem ser muito ruidosas. Tão ruidosas que simplesmente não se consegue calá-las. A experiência da solitude para alguns é praticamente impossível.

A solitude é aquela experiência de estar consigo mesmo, mas preenchido, não há a sensação de estarmos sós. O pensamento é companheiro e o quê os olhos veem e o corpo que sente são os alimentos desta alma. São interlocutores e incentivadores da profunda existência interior. Para estes, a experiência deste silêncio interior é bem vindo e o período de isolamento social favoreceu experiência agradáveis de estar consigo mesmo. Para outros, foi a sensação de aprisionamento solitário, melancólico e até depressivo que imperou.

Como vizinhos de janelas geminadas, a alma pode muito bem relacionar-se com os de dentro e os de fora, dependendo de como prioriza e sente todos os estímulos que lhe chegam. A janela que abre para o interior também é uma perspectiva, um enquadramento de sua atitude perante a vida. Ao fazer isso, como o fotógrafo enquadramos e enfocamos o que para nós é importante, e simplesmente omitimos ou desconsideramos o extra-quadro. Não acho que se precisa viver uma mentira. Basta apenas entendermos que nossas perspectivas tem contextos e se inscrevem dentro dele. Pôr em evidência alguns aspectos não significa que tudo o que está no extra-quadro não existe. Quando mudarmos o olhar tudo estará lá. Por isso é bom conhecer e conviver com todas as nossas mobílias interiores.

Provavelmente isso não se manterá, e muito em breve retornaremos aos nossos medos, inseguranças, trancas, vidraças, cortinas, telas de proteção. Mas teremos experimentado, ainda que brevemente, uma forma de relação interativa com uma sociedade inteira a partir não de uma tela de computador, mas de uma janela que se abre e deixa entrar.

Como podemos ajudar?
Na ER Consultoria possuímos metodologia própria, conhecimentos testados e experiência prática para auxiliá-lo com as melhore práticas.
Se você possui um acervo que seja Patrimônio Cultural/Documental e não sabe como zelar por ele ou torná-lo ferramenta metodológica para ministrar conteúdos interdisciplinarmente entre em contato com a ER Consultoria. Teremos enorme prazer em pensar numa Solução customizada para as suas demandas, ou para o tratamento técnico documental de acervos documentais e fotográficos e sua preservação e conservação, além de sugerir caminhos para a produção de conteúdos didáticos interdisciplinares.
Outro aspecto que podemos ajudar são os relacionados à Projetos de Memória Institucional e suas relações com as cidades.

Veja nosso Portfólio de Cases e o que nossos clientes tem a dizer.

___________________
Posts Relacionados:
Fotografia como Documento e Narrativas Possíveis
KODAK: uma história de derrocada ou de longevidade?
Chamem o carteiro: preciso de boas notícias!
Você ainda Escreve Cartas?
Empatia e gentileza: para quê, para quem e porquê?
A arquitetura do medo e a vigilância consentida
Uma sociedade de performance
Contradições em vidas modernas
Conheça e desenvolva seu FIB (Felicidade Interna Bruta)
Ruídos do silêncio
Afinal, quem você pensa que é?
E se…

***
Siga-nos: 
No LinkedIn

© 2021 ER Consultoria em Gestão de Informação e Memória Institucional
Todos os direitos reservados
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998).