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Importância do Rigor Metodológico e Conceitual em Memória Institucional

Por: Eliana Rezende Bethancourt 

À guisa de uma introdução:

A escrita coloca a quem escreve, o desafio de ponderar palavras e elaborar conexões de sentido. Diante disso, um esclarecimento: minha fala pauta-se a partir da observação que venho fazendo em relação ao oferecimento de cursos e outras formas de capacitação e/ou consultorias que tem proliferado nas redes, até propiciada pelos recursos online aos quais temos acesso. 

Uma tempestade perfeita se formou onde de um lado, temos a tecnologia acessível, e de outro pessoas disponíveis com tempo ou recursos, querendo realizar cursos e aperfeiçoamentos, ou demandas que necessitam de uma consultoria ou assessoria técnica. Engana-se aquele que acredita que, por ser uma capacitação ou consultoria, esta deva ser desprovida de rigor, e que qualquer coisa poderia ser aceita, já que são poucas horas destinadas a ela.

Os pilares que sustentam, e que firmam toda uma carreira, assentam-se obrigatoriamente na formação teórica, acadêmica e no rigor metodológico. São pilares que prezo e persigo tanto em mim, quanto no meu trabalho, meus alunos e nos profissionais que me cercam, ou nos clientes que me procuram.

Em geral, e até por uma demanda que chamamos de coerência, este rigor Conceitual e Metodológico devem ser acompanhado por ações profissionais que os sustentem. A seriedade imposta deve ser ainda mais rigorosa quando nos dispomos a ensinar ou a desenvolver um trabalho que repercutirá numa comunidade ou organização (seja ela qual for). A docência e o profissionalismo em áreas de conhecimento técnico é um compromisso público e ético com a área em que atuamos e com aqueles com quem compartilhamos nossos conhecimentos ou experiências.

Colocando uma lupa

Como é óbvio, não é possível cobrir todas as formas de capacitações ou consultorias e assessorias técnicas em diferentes áreas. Portanto, me aterei a minha área específica de atuação acadêmica e profissional que é a Gestão de Informação e a Memória Institucional. Leitores de outras áreas podem tirar proveito do que escrevi pensando em conexões com suas áreas especificas de formação e/ou atuação.
Meu debate procura reforçar a noção de que em todas as áreas há os que se esmeram em Conceituação e Método aplicáveis à sua prática profissional. Mas há também os que consideram isso supérfluo e até desnecessário, por considerarem que o que importa é mesmo a cifra ao término e ao cabo. Para estes últimos não há a preocupação, pois consideram que os demandantes pouco sabem e por isso tanto faz.

No decurso de minha experiência, e por diferentes vezes, me defronto com cursos ou consultorias oferecidas que pecam exatamente pela falta de compromisso ético com o rigor e a qualidade do que se oferece. Em alguns casos, tais cursos ou consultorias apresentam fragilidades conceituais, técnicas, metodológicas e chegam a ser oferecidos de uma forma mercadológica, onde preços e certificados são oferecidos e suas entregas muitas vezes, à domicilio!

Consigo compreender que existam, na livre concorrência e nas leis de mercado, sistemas mercadológicos tais como os descritos acima e que também existam alguns profissionais que se submetam a isso. O que definitivamente não sou capaz de aceitar são fragilidades conceituais e muitas vezes grandes equívocos propiciados pela tábula rasa da ausência de consistência teórica e intelectual sendo oferecidas como vantagem e capacitação.

Exemplo neste sentido é a área de Gestão Documental, por excelência uma área multidisciplinar, e isto lhe dá como característica predominante a possibilidade de trocas e experiências com diferentes saberes. Mas simplesmente não pode ser confundida e colocada de uma forma como se tudo pudesse estar junto e misturado, sem um detido e aprofundado estudo dos diferentes conceitos que a compõe.

Dentre eles cito os que são mais gritantes e perceptíveis na área que atuo: Memória Institucional, Gestão Documental, Processos Híbridos (microfilmagem e digitalização) e célebres frases indevidas e erradas como: “arquivos inativos”, “arquivos mortos”, ou afirmar que Arquivo seja Memória Institucional e que GED é Gestão Documental. Usual é também considerar que Informação possa ser tomada como Conhecimento. Algo impensável, já que Conhecimento representa uma a informação processada e transformada em experiência pessoal e intrasferível.

Pode ficar ainda pior quando técnicas são confundidas, como por exemplo, não saber diferenciar storytelling, depoimento, história de vida ou entrevista e de como estes poderiam ser realizados em um Projeto de Memória Institucional.
Ou não ser capaz de entender como a Memória Institucional acaba sendo uma parte importante do que seja a Memória Social, e que esta definitivamente tem que ver com Tabelas de Temporalidade Documental, e NUNCA com colecionismo ou escolhas que compõe uma lógica que está há anos-luz de ser um Método adequado. Coloco propositalmente temas que se tocam, mas são de áreas diversas e possuem concepções teóricas e metodológicas diversas, não porque seja errada a interdisciplinaridade, mas sim a incapacidade por parte de alguns de transitar por todas estas áreas sem praticar alguns equívocos conceituais.

Infelizmente tenho visto muitos confundirem Linhas de Tempo e “relíquias institucionais” com Memória Institucional e com História.
Em outros casos, vejo Memória Institucional ser confundida com Arquivo. Apesar dos arquivos fornecerem subsídios para que se possa chegar ao que denominamos Memória Institucional, Arquivo NÃO é Memória Institucional. Assim como Memória Institucional NÃO significa uma cronologia composta a partir da produção de documentos, como querem alguns arquivistas.
Alguns usam a expressão “resgate de Memória“, como se esta fosse uma ‘entidade’ a ser buscada em alguma parte, para ser embalada e mostrada como produto. Esquecem-se ou simplesmente não sabem que a Memória é forjada no território social, que é constituída a partir da História e que esta não existe à priori: é uma construção subjetiva a partir de um determinado ponto de vista e/ou repertório, em última instância é forjada a partir de relações sociais complexas e que possuem diferentes vetores.

O “equívoco” é grave quando se supõe que a partir de escolhas realizadas por áreas de Comunicação ou Marketing se acumulem documentos e objetos para formar o que chamam de Memória Empresarial ou Museu. Cabe sempre lembrar que documentos NÃO nascem para ser isso ou aquilo. São produzidos no âmbito de FUNÇÕES desempenhadas por pessoas ou organizações e por isso, a escolha aleatória por terceiros não passa em grande parte de achismos e de reunião de objetos e coisas que poderiam bem compor um “gabinete de curiosidades”. Decidir por critérios outros que este ou aquele documento ou objeto é histórico é, em grande parte um erro que não se sustenta por rigor teórico e metodológico. Ainda que se faça esta ou aquela pesquisa denominada histórica, esta está longe de ser rigorosa. Representa apenas uma forma de maquiar e dar lastro à coleção reunida por objetos e eventuais ditos documentos.

São portanto, equívocos cometidos em série e que atinge de morte áreas como a Arquivologia e a História.
Há também equívocos que consideram que a produção de documentos arquivísticos da Administração Direta e Indireta de Órgãos Públicos são Memória Institucional, o que NÃO é real. A Memória Institucional é uma construção e não fruto apenas de Tabelas de Temporalidade (apesar destes documentos ser utilizados como fontes). Ainda dentro desta mesma esfera e no campo da Administração Pública, os documentos permanentes (que são os de valor histórico) devem cumprir seus prazos legais como tais. Poderão ser utilizados como fonte histórica, mas NUNCA ser subtraídos dos conjuntos documentais de que são parte. Aqui temos um exemplo bem acabado do seja teoria e metodologia aplicáveis à diferentes áreas e que possuem em comum um conjunto documental. Uma área NUNCA poderá prescindir da outra ou suplantá-la.

Também NÃO é Memória Institucional elaborar Linhas do Tempo ou escrever textos bonitinhos para integrar livros comemorativos ou mesmo exposições. Não é também colecionar imagens num álbum de fotos antigas, ou fazer colagens de ‘curiosidades’. Reduzir o trabalho a isso significa oferecer “perfumarias” desprovidas do que seja o verdadeiro significado da Memória Institucional. É preciso ir muito além disso. Como repito constantemente: a Memória Institucional não é um produto em si. É sim, meio para fortalecer a Identidade e Cultura Organizacional. É favorecer a produção de Conhecimento e Inovação dentro das organizações além de ser importante na valorização do Capital Intelectual nas organizações.

São tão graves esses equívocos que, colocar tais termos em cursos ou consultorias oferecidas, mostra à partida quão grave e preocupante é a qualidade do que se abordará! Quem se propuser a ir por esta seara deverá estar firmemente embasado por 4 áreas, talvez 5: Arquivologia, História, Tecnologia, Biblioteconomia e Gestão. Sendo a História a mais complexa e com maior rigor de leituras e metodologia. As demais áreas são técnicas e de aplicação. Diante disso, conceitos caros à História como Memória, Identidade, Sociedade, Cultura, etc, devem ser tratados a fundo e muito bem fundamentados. Utilizar tais conceitos sem conhecimento de causa é pelo menos uma temeridade.

Vejo a multidisciplinaridade como meio eficaz de aprendermos e nos esmerarmos com o aprendizado e nunca, nem que seja por um minuto sequer apropriar-nos de forma errada, equivocada ou despretensiosa de uma área tão grande de conhecimento.

Não aceitem ser ludibriados! Solicito que tenham atenção. Verifiquem, analisem, peçam indicação.

Um diagnóstico preliminar
A formação profissional, metodológica e técnica é algo sério e todos devemos zelar por isso! Se não souber avaliar, peça ajuda de quem saiba! Não temos que saber tudo sobre tudo, mas temos o dever de esclarecer quando houver problemas graves.

Um equívoco custa caro ao seu emitente, mas pode ser muito mais caro ao consumidor do mesmo! Exatamente por preocupar-me com os que buscam o saber é que estou me posicionando. Os discentes ou clientes muitas vezes, não possuem ferramentas para discernir, às vezes são jovens demais, inexperientes e oriundos de outras áreas. Por isso, temos que nos colocar e esclarecer quando possível quando detectamos tais problemas.

Acho que é um misto de várias coisas, em especial para os casos de cursos para que tais problemas ocorram.
De um lado, há uma busca de ter sempre na prateleira alguma coisa de consumo rápido e raso… sem grandes compromissos ou aprofundamentos. Este uso é comum, e temos casos de conteúdos ficarem ali sendo “fornecidos” por anos à fio. Já vi casos que os docentes morreram e o conteúdo permanece ali disponível. Isto em geral ocorre com modalidades em formado EaD previamente gravados, ou mais recentemente em formatos de conteúdos online. Estes obedecem uma lógica de oferecer ao maior número possível de pessoas o mínimo sobre algum tema. Com isto possuem um atrativo simples: custos módicos, certificados rápidos e a fantasia de capacitação.

Em outros casos, pode haver má fé: pessoas apropriando-se de ideias e proposições de outros e tentam costurar algo que sirva à vários “corpos”.

E numa que talvez seja a forma mais grave, que é a falta de cabedal e sustentação intelectual e conceitual que compromete a formação de outros. Considero essa a forma mais grave pois quando ensinamos estamos nos comprometendo com a ética da partilha de Conhecimento, mas este deve assentar-se de forma sólida numa formação devida. Nunca poderá ser aceitável uma pessoa que não seja de determinada área ser irresponsável de abarcar saberes que desconhece, ou que os saiba apenas de superfície. O que digo, é que não há problema algum em visitar áreas afins, beber e constituir perspectivas para atuação pessoal e profissional. Mas nunca apropriar-se indevida e equivocadamente daquilo que não sabe só como forma de tornar palatável a venda de um produto ou serviço (no caso aqui me refiro a cursos de capacitação e/ou consultorias).

Talvez o maior remédio que temos contra isso é que as pessoas aprendam a selecionar.

Creio que muitos espaços são indevidamente ocupados exatamente porque os que o deveriam fazer isso deixam as brechas.

Uma torre fortificada numa Ilha da Fantasia

Cito como exemplo, a minha área – as Ciência Humanas -, que é também território de aplicabilidade e prática e infelizmente muitos acham que só são profissionais se estiverem na academia… deixam com isso, espaços que poderiam ser seus na sociedade, em empresas e instituições, para serem ocupados por profissionais que possuem talvez boa vontade mas lhes falta consistência, aprofundamento e na maioria das vezes, leituras da formação.
Seria interessante que os profissionais se desencastelassem da academia e fossem ao mundo real atuar de forma aplicada quer ministrando capacitações, quer prestando assessorias técnicas ou consultorias!
A sociedade ganharia muito!

O fato a que me refiro é de que muitos profissionais encastelam-se em suas “fortalezas” intelectuais: produzindo apenas para seus pares e deixam de alcançar o cerne da sociedade. Mas creio que discursos esvaziam-se quando ficamos em discussões epistemológicas, conceituais ou de especialidades sem o pé na realidade. Aí o que temos é apenas, e tão somente, conteúdos que massageiam egos e inflam vaidades.

Preocupo-me muitíssimo, e aí falo dentro da minha área de atuação (sou historiadora, de graduação à pós-doc), que exista essa cisão de que o profissional de gabinete quase nunca saiu de sua zona de conforto e em muitos casos, não conhece as demandas de mercado e das instituições que não sejam as acadêmicas. Sabe pouco sobre a aplicação de tantos conhecimentos discutidos apenas na academia em um formato teórico. A metáfora que gosto de usar é a da Ilha da Fantasia. Alguns intelectuais ficam apenas dentro da academia, numa bolha que não o coloca no confronto direto com as demandas da realidade. Seria muito interessante que tais intelectuais pegassem seus barquinhos e fossem ao continente para ver o que se passa. Voltariam com outros olhares para a sua pequena ilha.

O inverso também é verdadeiro. Alguns saem da Ilha, vão ao Continente e NUNCA mais retornam à sua origem. Ou seja, afastam-se do rigor que é tão caro e necessário na Academia. Acredito sinceramente que o profissional do século XXI precisa e deve trafegar entre a ilha e o continente e saber levar de cada um o que há de melhor. Este seria o melhor dos mundos.

A História durante toda sua existência, e com especial força durante todo o século XIX, lutou para instituir-se e figurar como Área de Conhecimento. São discussões longas, cujos iniciadores não viveram para ver o final. Mas é muito importante que as aproximações feitas entre áreas diversas representem um esforço sério de embasamento teórico, metodológico e técnico (quando for o caso).

Arquivologia e Biblioteconomia iniciaram essas discussões ainda há pouco e há também as Ciências da Informação, que reivindicam um outro espaço de ocupação, o que indica uma longa e árdua discussão em campos teóricos e epistemológicos não cabíveis de fato ao espaço deste artigo.

Uma proposição
Acho que deve haver a busca do caminho do meio: há sim discussões teóricas, metodológicas e epistemológicas no universo de constituição e aplicação desses saberes, mas há também um território de aplicabilidade que não se encontra na academia e que nem por isso deva ser feito de forma pouco consistente. Um não deve servir de impedimento ao outro. A responsabilidade fica assim na mão de profissionais que devem estar inteirados, atualizados, preocupados e responsavelmente determinados a aplicar os mesmos em suas respectivas áreas de atuação.

Considero que estes equívocos ocorrem exatamente porque muitos profissionais de academia não assumem seu papel de agentes no âmbito social e fornecem as brechas para que profissionais sem muitos escrúpulos mascateiem o que deveria ser algo mais sério: que é a formação profissional. Este é um ponto que me inquieta.

Às vezes, os pesquisadores nos cursos de pós graduação (aqui refiro-me mais aos Mestrados e Doutorados) permanecem num mundo à parte e o que digo é que toda essa competência de fundo conceitual, metodológico, teórico precisa aparecer na sociedade e nos produtos oferecidos a instituições públicas e privadas e que não fiquem restritas às salas e discussões em aula. É altamente salutar fazermos isso! Em hipótese alguma sou contra a produção acadêmica e escrever e compartilhar deve ser nossa preocupação.
Não me coloco contra a realização de cursos e capacitações oferecidos em ambiente de web. Desde que os respectivos profissionais sejam responsáveis e tenham estofo intelectual, teórico e metodológico para isso. Esta responsabilidade sim, fará com que haja produção de Conhecimento. E é com ela que me preocupo e esforço todos os dias. 

É contra esse mercantilismo que me coloco!

A dica que fica é: quer aprimorar seus conhecimentos? Estude, investigue para poder saber escolher entre joio e trigo. 

Ou então:

Quino, Picasso revisitado

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