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Letra cursiva: a caminho da extinção?

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Recentemente lia sobre a decisão, e que em alguns países está se tornando lei, que é a de não ensinar mais a letra cursiva nas escolas para estudantes que estão sendo alfabetizados.

Ao que parece tal decisão pauta-se mais pelos que consideram que a escrita digital está substituindo a escrita cursiva, e que esta última não possui sentido em um mundo feito de parafernálias digitais e outras formas de composição do escrito.

Não sei se esta radicalização é correta neste momento ou se basta deixar os anos correrem para ver se a escrita cursiva de fato cairá na obsolescência e consequente esquecimento, tal como o dizem seus profetas apocalípticos.
Tudo acaba sendo especulativo.
Mas de fato, creio que essa opção de extirpar a escrita cursiva, ainda na alfabetização, será alvo de acaloradas e intensas discussões.
Um artigo interessante do The New York Times trata desta questão do ponto de vista do que se tem com a escrita de próprio punho. 

No lado oposto, estão os que defendem que a escrita de próprio punho é não apenas salutar, como ajuda a desenvolver aspectos neurológicos, de memória e retenção que nos meios digitais não seriam possível.

Em relação a isto, e até mesmo no Brasil muitos conteúdos têm sido revistos quanto à sua importância no currículo, e a letra cursiva é mais uma destas reflexões.

O que precisa ser levado em conta é que a transmissão da ideia de um texto escrito necessita ser inteligível a qualquer um, em dois aspectos: coesão e letra. Pois a ideia pode ser ótima, mas se perde quando a letra não possibilitar sua leitura e compreensão. Penso que a letra (qualquer uma delas) é um recurso intermediário e nunca o objetivo final.
De que vale uma letra maravilhosa com pobreza de ideias, sem clareza de raciocínio?

Para nós, que temos o domínio de todas as formas e formatos que a escrita pode ter, é apenas uma questão de escolha por um ou outro meio. Agora, optar pelo não ensino é uma discussão que vai muito além.

O maior problema que temos assistido é que da mesma forma que os suportes têm feito a cisão entre conteúdo e forma, o mesmo vem ocorrendo, ainda que de forma sutil entre escrita digital e cursiva.

Para, além disso, a escrita vem tornando-se fonética e encontra públicos usuários de todas as idades. Tenho para mim que seria um dos motivos de estarmos assistindo uma inviabilização da escrita cursiva com alguma fluência. Os alunos quase que junto com a alfabetização começam a se comunicar utilizando essa forma de linguagem.
Tão logo aprendem as primeiras letras incorporam os vícios da linguagem fonética.

Em outros tempos éramos alfabetizados e utilizávamos o encurtamento de caracteres para simplificar a escrita ágil, em geral para anotações de aula. Obedecíamos às regras e a forma taquigráfica tinha como base uma boa redação. Hoje o que temos são alunos que não aprenderam a ler, a se expressar e transformam essa expressão em código escrito que tenha inteligibilidade e correção.

Nossa sociedade, dita digital, está se habituando cada vez mais com a pirotecnia de telas e teclados e a cisão entre forma e conteúdo acontece sem se darem conta disso. 

Em tempos analógicos seria impensável separar conteúdo de suporte. Daí que a escrita de próprio punho cunhava sobre o papel modos de ser e expressar… a grafologia fornecia uma possibilidade concreta de análise do indivíduo a partir de seus dados, peso da escrita sobre o papel, aproximações e distanciamentos entre as formas gráficas. Todo um conjunto formado por tintas, papéis e mãos compunham uma identidade pessoal ao escrito. Forneciam indícios e sinais de quem era e até seu estado de ânimo no momento da escrita.

Com os processos digitais, conteúdo e forma se cindiram e hoje esta cisão acaba sendo “natural”, até para propiciar links e hiperlinks que saem de um lugar e vão ao outro em ritmo de sons, imagens, textos e cores e que muito pouco possui do traço do individuo. As formas já vem prontas e a disposição gráfica é homogênea, a partir apenas e tão somente de aplicativos determinados. Os textos não precisam mais de um suporte em papel e grafar um sentimento utilizando a escrita não necessariamente transmitirá a quem lê as sensações de humores e fragilidades como ocorria com a escrita sobre papel.
Passamos de inscrições à pena para esferográficas num longo período de adaptação que levou séculos. A estabilidade dos suportes em papel e da tecnologia de uma ferramenta como uma pena, lápis ou caneta levaram muito tempo dentro da história da escrita e leitura.

Ao contrário do que temos hoje, teclados substituíram de forma avassaladora o que tínhamos como referência de escrita e em pouco mais de duas ou três décadas começamos a achar impossível voltar a escrever como fazíamos. Ou seja, a transição dos suportes físicos para os digitais ocorreu de forma veloz e quase que sem transição. De repente paramos de escrever.

Aqui temos outra dimensão do tripé: leitura, escrita e comunicação. Enquanto a escrita de próprio punho possa sofrer alterações de ritmo e velocidade em função das tecnologias utilizadas, a leitura e a comunicação de ideias não possuem as mesmas características.
De um lado, pode-se ter acréscimos se pensarmos em compartilhamentos de qualidades e que amarrem de fato ideias. Mas sabemos o quanto isso tem se distanciado do ideal.
Apesar de programas facilitarem correções ortográficas e erros mais óbvios, eles não conseguirão extirpar problemas que tenham que ver com clareza e objetividade de ideias. Neste sentido, a escrita tem um componente mais “braçal” no sentido de exigir da parte de quem escreve, esmerilhar as palavras e encontrar as que comuniquem com maior clareza suas ideias.
Como um grande bordado, escrever e comunicar exige um ir e vir sobre o texto e buscar as melhores palavras e as encaixar nos lugares certos.

Só que em tempos de imediaticidade, contenção e superficialidade os textos, ainda que curtos, perdem muito da fluidez da boa escrita, pautada em boas leituras e concatenadas com raciocínio articulado. Essa “terceirização” que muitos estão fornecendo a corretores ortográficos e similares mutila e deforma conteúdos, mesmo os ditos profissionais…. infelizmente.

Com o tema encontramos a bifurcação entre a expressão comunicacional e seus suportes. Como um dado de suporte os meios que temos hoje chegam a agilizar pensamentos e formatar ideias. Mas é apenas, e tão somente, um meio. Se o que antecede a tudo que é formatação mental de uma ideia, um conceito que, ou o que quer que seja, não tenha um embasamento sustentável não haverá tecnologia que “conserte” isso.

Engraçado pensarmos como foi difícil todo esse processo. Minha dissertação de Mestrado começou sendo escrita em máquina de escrever e me lembro com perfeição que no início escrevia tudo à mão para depois digitar com medo que tudo se perdesse antes que estivesse definitivamente salvo. Temia que minhas ideias fugissem e eu as perdesse numa malha virtual. Preferia o árduo trabalho de escrever à mão para só depois digitar.

Hoje em dia, tenho que confessar minha escrita manual está cada vez mais lenta, minha letra definitivamente não é mais a mesma e hoje digito na mesma velocidade em que penso. Ou seja, minhas mãos não acompanham mais meu raciocínio. A digitação é infinitamente mais fluente e rápida.

Mas gosto de pensar que tudo é uma questão de escolha. Não creio em radicalismos, em especial o de simplesmente um decreto pondo o fim ao ensino da letra cursiva na alfabetização básica. Acho que as pessoas têm que ter a escolha… sem aprender fica um pouco difícil.

Essa facilidade que nós, da versão analógica sentimos, talvez não seja a mesma que as crianças sintam. Basta ver o fascínio que as telas sensíveis ao toque exercem até em bebês!

Notamos uma busca de ergonomia dos gadgets para que se assemelhem a modos que estávamos habituados a nos expressar, sendo a escrita cursiva uma delas, alguns inclusive incluem canetas e estilos em seus acessórios.

É óbvio que estamos de novo com sinais de novos tempos e apropriações culturais de códigos e postura no ler e escrever. Tal como a língua, a escrita e a leitura são elementos de nossa cultura e são vivos: sofrem mutações todo o tempo e simplesmente vamos nos adequando.

Lembro que as sociedades nem sempre mantiveram os mesmos padrões para a leitura e muito menos para a produção do escrito. Essa relação foi desde o sagrado (já que dominar a arte da escrita aproximava o homem de sua divindade) à estruturas que colocavam o escriba como um alto funcionário do governo. Era uma escrita técnica e absolutamente dominada por bem poucos.

A passagem para pergaminhos e tintas também não foi sem certa dose de elitismo já que era apenas nos mosteiros que elas eram realizadas e possuíam ainda essa característica de um poder concedido a poucos.

A imprensa e com elas os meios de disseminação da leitura, popularizaram posteriormente também a escrita. Foi a partir daí que as tintas ganhavam o papel e o imaginário das pessoas como forma de externar sentimentos e os séculos mais recentes, em especial o XVIII e XIX, conheceram a escrita romântica e o desenvolvimento das chamadas escritas ordinárias. Foi a época dos diários e da relação com a escrita como uma catarse. O século XX manteve boa parte disso e até mesmo técnicas de grafologia foram desenvolvidas exatamente para relacionar aspectos de personalidade com a escrita de próprio punho, conforme citei acima.

Talvez eu ainda seja romântica no sentido crer que a expressão pelas palavras deve vir em todas as formas e me encantam mais as palavras que seus suportes.

Pode ser que esse saudosismo que deixo transparecer pela escrita de próprio punho tenha que ver com uma pratica profissional e com uma experiência de vida. O tema da escrita e seus suportes são, para mim, forte questão até por que transcende meu gosto pessoal e perpassa meu ofício: sou historiadora e a lida com suportes de outro tempo quase sempre é uma constante em minha trajetória pessoal e profissional. Dado que aí é impossível não fazer as comparações. Ainda tenho muito vincado em mim a experiência da escrita de próprio punho.
Em diferentes momentos e artigos cito o papel das correspondências ordinárias como, por exemplo, as cartas. Um exemplo disso é o artigo que escrevi “Você ainda escreve cartas?”

Considero que definitivamente a escrita cursiva não significa apenas motricidade. Movimenta todo um conjunto de conexões cerebrais que favorecem o aprendizado, e não podemos deixar de pensar que é tbm tecnologia!
Mas não creio que isso seja consenso por ora. É um debate que se estenderá no tempo e no espaço.

Hoje em dia, as palavras deixam de ser pensadas e as correspondências giram em torno do imediato. Roubou-se a aura da palavra cunhada e da magia que seus complementos tinham (os selos, os papéis, os timbres, as tintas, o rebuscado de letras e formas, sua sinuosidade e curvas).

Apesar do ar saudosista tenho claro que as alterações no mundo em que vivemos são parte de um processo e que como tal não deve ser desprezado ou ignorado. Não vejo como um problema essa alteração que nossos tempos e tecnologias vêm imprimindo à escrita. O desafio é grande por que não vem só com a escrita fonética é todo um conjunto, e o que é pior: avassala toda uma geração cultural.

Há ainda a questão do raciocínio lógico e o uso de operações consideradas básicas. Os alunos em geral têm passado longe dessa capacidade e o que vemos cada vez mais é um analfabetismo funcional que alcança até os níveis de graduação e pós-graduação.

Não culpo apenas o sistema de ensino. Volto a dizer que sou fruto dele e nunca estive em uma escola particular. Foi necessária muita determinação e empenho. Algo que parece meio em desuso pela maioria dos discentes. Muitos optam pela lei do menor esforço e em geral até a escolha de uma faculdade passa por aquela que não tem processos rigorosos de ingresso nem de permanência.

Mas isso é assunto para outro post…

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* Versão revista e atualizada de post publicado originalmente no meu Blog, o Pensados a Tinta

** Artigo relacionado:
Rezende. Eliana Almeida de Souza. “Em tempos de tintas digitais: escritos e leitores“. Anais do II Seminário Internacional História do Tempo Presente, 13 a 15 de outubro de 2014, Florianópolis, SC. Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

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