Dias Escuros em Tempos molhados

Por: Carlos Drummond de Andrade – Correio da Manhã, 14/01/1966*

Por: Eliana Rezende Bethancourt**

Os dias escuros
“(…) Amanheceu um dia sem luz – mais um – e há um grande silêncio na rua.
Chego à janela e não vejo as figuras habituais dos primeiros trabalhadores.
A cidade, ensopada de chuva, parece que desistiu de viver.
Só a chuva mantém constante seu movimento entre monótono e nervoso.


É hora de escrever, e não sinto a menor vontade de fazê-lo. Não que falte assunto. O assunto aí está, molhando, ensopando os morros, as casas, as pistas, as pessoas, a alma de todos nós. Barracos que se desmancham como armações de baralho e, por baixo de seus restos, mortos, mortos, mortos.
Sobreviventes mariscando na lama, à pesquisa de mortos e de pobres objetos amassados. Depósito de gente no chão das escolas, e toda essa gente precisando de colchão, roupa de corpo, comida, medicamento.
O calhau solto que fez parar a adutora.
Ruas que deixam de ser ruas, porque não dão mais passagem. Carros submersos, aviões e ônibus interestaduais paralisados, corrida a mercearias e supermercados como em dia de revolução.

O desabamento que acaba de acontecer e os desabamentos programados para daqui a poucos instantes.
Este, o Rio que tenho diante dos olhos, e, se não saio à rua, nem por isso a imagem é menos ostensiva, pois a televisão traz para dentro de casa a variada pungência de seus horrores.
Sim, é admirável o esforço de todo mundo para enfrentar a calamidade e socorrer as vítimas, esforço que chega a ser perturbador pelo excesso de devotamento desprovido de técnica. Mas se não fosse essa mobilização espontânea do povo, determinada pelo sentimento humano, à revelia do governo incitando-o à ação, que seria desta cidade, tão rica de galas e bens supérfluos, e tão miserável em sua infra-estrutura de submoradia, de subalimentação e de condições primitivas de trabalho?
Mobilização que de certo modo supre o eterno despreparo, a clássica desarrumação das agências oficiais, fazendo surgir de improviso, entre a dor, o espanto e a surpresa, uma corrente de afeto solidário, participante, que procura abarcar todos os flagelados.

Chuva e remorso juntam-se nestas horas de pesadelo, a chuva matando e destruindo por um lado, e, por outro, denunciando velhos erros sociais e omissões urbanísticas; e remorso, por que escondê-lo?

Pois deve existir um sentimento geral de culpa diante de cidade tão desprotegida de armadura assistencial, tão vazia de meios de defesa da existência humana, que temos o dever de implantar e entretanto não implantamos, enquanto a chuva cai e o bueiro entope e o rio enche e o barraco desaba e a morte se instala, abatendo-se de preferência sobre a mão de obra que dorme nos morros sob a ameaça contínua da natureza; a mão de obra de hoje, esses trabalhadores entregues a si mesmos, e suas crianças que nem tiveram tempo de crescer para cumprimento de um destino anônimo.

No dia escuro, de más notícias esvoaçando, com a esperança de milhões de seres posta num raio de sol que teima em não romper, não há alegria para a crônica, nem lhe resta outro sentido senão o triste registro da fragilidade imensa da rica, poderosa e martirizada cidade do Rio de Janeiro (…)”.

Rio de Janeiro – 1966

Não, não a História não se repete…a História não é cíclica. Nós humanos que gostamos de nos repetir em nossos erros vezes sem conta.

Aprendemos pouco com o que o Tempo nos deu e teimamos em ocupar espaços que não nos pertencem, em cobrir caminhos que margeiam rios, encostas. Teimamos em alterar itinerários, desmatamos e largamos cicatrizes imensas em territórios que não possuem como se proteger a não ser permitir que corredeiras se façam.
As águas que escorrem misturam-se a terra que rapidamente vira lama e esta como uma onda pegajosa arrasta construções, objetos e pessoas quase sem diferenciar cada um deles pela força que os consegue arrastar. Deixa atrás de si um rastro de destruição, perdas e mortes.
E é assim que todos os verões sabemos que a chuva chegará dentro de uma grande nuvem negra, que se desabotoará por encostas e atingirá prontamente aqueles que nem sempre por escolha estão ali. E assim, ano após ano contamos nossos mortos e ouvimos as promessas que NUNCA se cumprirão de que haverá moradias e lugares decentes para todos.

Tal como nos diz o poeta são nos dias escuros que percebemos que a luz que nos deixou trouxe a água que enche ruas, bueiros e leva tudo o que encontra. Serão estas águas que carregarão os corpos de trabalhadores urbanos e suas casas insalubres e farão subir as estatísticas das vidas que foram interrompidas. Acontece que vidas interrompidas são projetos de existência que não se deram, que não ocorreram e NUNCA poderão ser confundidos com estatísticas de inundações, deslizamentos ou desabamentos.

A cidade, os leitos de rios e córregos transbordam e acabam por refletir a forma como eles próprios são maltratadas, usados e desrespeitados. O lixo produzido e jogado por janelas ou despejados em esgotos ilegais auxiliam no acúmulo do que será despejado logo à frente quando estes encontrarem barrancos e barracos.

Os elementos são muitos e variados e cada sociedade e tempo traz seus elementos que comporão as crônicas do dia seguinte, que parece se repetir indefinidamente… não adianta culpar a História… é preciso aprender com ela para simplesmente parar de se repetir…

São Sebastião – São Paulo Fevereiro de 2023

______________
* A enchente a que o poeta se refere é a ocorrida na cidade do Rio de Janeiro em 1966, que resultou em 250 mortos e mais de 50 mil desabrigados.
** A escolha de publicar a crônica do poeta se deu pelos volumes de chuva no Litoral de São Paulo em Fevereiro de 2023 onde choveu em 14 hs e 683 mm de chuva. O maior índice pluviométrico da História do país até aquela data.

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