A História por trás de uma Fotografia

Por: Eliana Rezende Bethancourt

Uma fotografia representa sempre um recorte, um enfoque de algo que se quer destacar, na exata medida em que exclui o seu extraquadro. Uma fotografia é sempre o produto da intenção de um fotógrafo que nos dirige o olhar e nos aponta o que deseja pôr em relevo.

A maioria destes registros são compostos pela habilidade técnica de um especialista que se soma a um conjunto de oportunidades. O famoso: estar na hora certa, no lugar certo.

Fico fascinada com vários destes registros, pois congelam um momento que se tornará histórico para a posteridade e nos dará a exata sensação (ainda que irreal) de estarmos vivendo aquele momento e compondo com ele um registro que se cristaliza, muitas vezes nas nossa memórias, e até de toda uma sociedade ou geração. O poder de um registo iconográfico que alcança milhões e dá a todos estes o sentido de pertencimento é algo muito interessante.

O registro que escolhi para falar faz aniversário: foi em 5 de Março de 1960 que um dos retratos mais icônicos e mais reproduzido da história da fotografia foi tirado. O fotógrafo cubano conhecido como Alberto Korda (em verdade chamava-se Alberto Díaz Gutiérrez) produzia o retrato de Che Guevara intitulado posteriormente de “Guerrillero Heroico”. Um registro icônico, pois tornou-se símbolo cultural de toda uma época e que transcendeu em muito a luta socialista travada em Cuba naqueles anos.

Odiado por uns, admirado por outros esta imagem foi composta e recomposta de diferentes maneiras. Recortada, colorida, colada de diversas formas tornou-se botons, bandeiras, camisetas, canecas, banners, cartazes. Ganhou uma dimensão e um espaço no território do simbólico e tornou-se para muitos símbolo de resistência, idealismo, reverência, luta contra desigualdades e busca por justiça social. O registro fotográfico desta forma ganhou muitas camadas de significação e seu território de apropriações transitam por áreas culturais, ideológicas, sociais, politicas, antropológicas.

Da mesma forma e com a mesma voracidade é combatida, desprezada , insultada, ofendida e atacada por outros tantos.

E assim, o registro foi muito além de si próprio, e se tornou por meio de sucessivos compartilhamentos e usos uma forma de expressão.

Mas, como citado acima, nenhum registro sai de um vácuo obscuro. Ele próprio possui uma história, uma gênese. E é ela que abordaremos a seguir.

Um fotógrafo e sua obra

O momento do registro era uma solenidade realizada em memória de mais de 100 pessoas que haviam morrido em uma explosão de um cargueiro que havia partido da Bélgica em direção à Havana carregando 76 toneladas de armas e munições. O cargueiro chamava-se La Coubre.
Foram duas explosões com intervalo de mais ou menos 30 minutos, enquanto o cargueiro era descarregado.

Che Guevara estava em uma reunião no Instituto Nacional de Reforma Agrária, e como médico seguiu imediatamente para atender as vítimas.

Em pouco tempo ficou claro que havia sido um atendado patrocinado pelos EUA e que tinha um infiltrado que causou a “revolta”.

Durante a cerimônia no Cemitério Colón, o fotógrafo Korda (Havana, 1928 – Paris, 2001) se impressionou com o semblante de “implacabilidade absoluta” de Che Guevara, “cheio de pura raiva pelas mortes que ocorreram no dia anterior”. Descreveu o registro como sendo um “um instante de sorte”.
Em suas palavras:

Encontrava-me num plano mais baixo em relação à tribuna, com uma câmara fotográfica Leica de 9mm. Em primeiro plano estavam Fidel, Sartre e Simone de Beauvoir; Che estava parado atrás da tribuna. Houve um instante em que passou por um espaço vazio, estava numa posição mais frontal, e foi aí que em segundo plano emergiu a sua figura. Disparei. Em seguida, percebo que a imagem é quase um retrato, sem ninguém atrás. Volto a câmara na vertical e disparo segunda vez. Isto em menos de dez segundos. Che afasta-se então e não regressa aquele lugar. Foi uma casualidade…”

Fotógrafo oficial do jornal “Revolución” nesta ocasião Korda fez dois registros (uma foto horizontal e uma vertical, mas descartou a segunda porque sobressaia uma cabeça atrás do ombro de Guevara) que entretanto não foram utilizadas pelo jornal. Assim o famoso negativo permaneceu guardado por vários anos em meio a outros tantos registros, totalmente desconhecido pelo público em geral. Era apena mais um registro entre tantos do acervo pessoal do fotógrafo.

Korda e sua obra

Os negativos ficaram assim guardados até o ano de 1967, logo após a morte de Che Guevara, quando Korda cedeu os negativos gratuitamente para editor italiano Gianfranco Feltrinelli, que editou e espalhou as imagens em cartazes.

Um ano depois em 1968, o artista plástico irlandês Jim Fitzpatrick usou a fotografia para criar uma imagem em alto contraste e a registrou em domínio público com autorização do autor.
Nas palavras de Fitzpatrick:

“Fiz alguns pôsteres dela, mas o que importa, o preto e vermelho que é familiar para todos, o mais emblemático, esse foi feito após o assassinato e a execução (de Che) como prisioneiro de guerra, para uma exibição em Londres chamada Viva Che. O Che é muito simples. É um desenho em preto e branco ao qual acrescentei o vermelho. A estrela foi pintada à mão de vermelho. Graficamente é muito intenso e direto, é imediato, e é isso que gosto nele”, revelou Fitzpatrick.

Assim a imagem de Korda ganhou o mundo.

A partir deste momento este registro ganhou uma dimensão impensada até então, transformando-se em uma das maiores referências culturais e visuais da história contemporânea. Alguns chegando a cravar que seria uma espécie de ‘Mona Lisa’ do século XX.

Com isso, o registro ganhou nome de batismo e atravessou os muros do seu próprio contexto de produção.

O “Guerrillero Heroico” ganhou status revolucionário que despertava ao mesmo tempo amor e ódio, usos e abusos. E absolutamente conheceu estampas em diferentes objetos, suportes, campanhas para diferentes produtos, foi até inspiração para serigrafias de Andy Warhol e foi mimetizada em capa de álbum da Madonna.

Com direitos de uso de imagem doados por Korda a imagem não conheceu limites e se tornou para sempre uma referência no imaginário de todos: apoiadores ou detratores de todo o seu ideário revolucionário.

Para a pesquisadora Maria-Carolina Cambre: “o Guerrillero Heroico está sempre em movimento, passa pelo reino do simbólico ao sintomático e oscilante entre esses tipos de classificações, enquanto rejeita esses tipos de quadros. Em outras palavras, a força do apelo de Guerrilheiro Heroico quebra o quadro”.
Em sua perspectiva, “enquanto as indústrias da moda trabalham para diluir o poder simbólico da foto e despolitizá-la, outros a reinvestem com significados emancipatórios e políticos”.
“A imagem de Che Guevara representa mais do que apenas um rosto. É uma imagem que se tornou um símbolo e assumiu diferentes funções sociais, culturais e políticas. Foi reverenciado, desprezado ou realizado em procissões”, relatou a pesquisadora.

Pesquisadora Maria-Carolina Cambre

Todos estes usos só foram possíveis a partir da perspectiva de Korda sobre tais usos.
Falando sobre os motivos que o levaram a nunca cobrar direitos sobre o uso da imagem, respondeu em entrevista ao jornal australiano Herald Sun:

Como defensor dos ideais pelos quais Che Guevara morreu, não sou avesso à sua reprodução por aqueles que desejam propagar sua memória e a causa da justiça social em todo o mundo, mas sou categoricamente contra a exploração da imagem de Che pela promoção de produtos como álcool ou para qualquer finalidade que denigra a reputação do Che”.

Che Guevara tinha na época deste registro 31 anos de idade, o que trazia ao registro imagético uma força e beleza própria da idade. Mas havia mais: sua personalidade carismática imprimia ao registro muito mais elementos. O retrato, portanto, o transcendeu e se transformou em algo muito maior do que ele mesmo era como pessoa física. Tornou-se um símbolo.
É portanto, icônica neste sentido.

Como conclui a pesquisadora citada acima:


Não estamos mais falando de alguém se apropriando da imagem de Che para fazer alguma coisa. Em vez disso — em nossa cultura recortada e colada de compartilhamento contínuo de sinais — podemos dizer que o rosto de Guevara se tornou uma interface coletiva e um canal de expressão”.

_________________
* Referências:
Os bastidores da lendária fotografia que eternizou Che Guevara
Fio produzido pelo perfil @historia_pensar
IFotoChanel – O maior Portal de Fotografia
Rezende, Eliana Almeida de Souza. ”Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade”. An. mus. paul. [online]. 2007, vol.15, n.1, pp.115-186. ISSN 0101-4714. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-47142007000100003 
____________________________. “OLHARES SOBRE O TEJO: Benoliel, o fotógrafo de Lisboa

** Posts Relacionados:
Fotografia como Documento e Narrativas Possíveis
KODAK: uma história de derrocada ou de longevidade?
Nas ruas e nas redes: uma metodologia para análise da sociedade digital
Quino & Mafalda: Eternos

**
Siga-nos: 
No LinkedIn
No Pinterest

© 2021 ER Consultoria em Gestão de Informação e Memória Institucional
Todos os direitos reservados
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998).

Oh, olá 👋,

Nos ajude a manter sua caixa saneada e livre de conteúdos que você não deseja.

Para isso, caso aceite, inscreva-se para receber conteúdo inédito das áreas que atuamos uma única vez ao mês

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.


Descubra mais sobre ER Consultoria Gestão de Informação e Memória Institucional

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.