Por: Eliana Rezende Bethancourt

A maior metrópole do Brasil é famosa por seus congestionamentos que em determinados dias chegam a mais 350 Km. Um fato que não é novo e que revela uma cidade pulsante, com um ritmo acelerado.
Em dias recentes um debate intenso se colocou quando o Prefeito da cidade decidiu para o bem da diminuição de acidentes reduzir a velocidade nas marginais. Em pouquíssimo tempo uma onda de descontentamento se fez.

Em verdade, a cidade sempre conviveu com muitos e graves acidentes. A maioria quando ainda eram usadas apenas carroças.

Viaje comigo pelo tempo e percorra esta Pauliceia, que desde sempre parecia aos seus moradores como completamente desvairada:

Tal como outras capitais do mundo em fins do século XIX e nos princípios do século XX, São Paulo também via sua vida urbana crescer e se modificar. Assistia atônita uma gama imensa de transformações nos hábitos de vida, modos de produção e formas de deslocamentos e adensamento populacional.

As ruas da Pauliceia encontrava por parte dos que a administravam problemas de todas as ordens e constantemente eram alvo de acalorados discursos realizados na Câmara Municipal ou mesmo na imprensa diária, onde os problemas urbanos ganhavam o tom de reivindicações populares ou mesmo de críticas aos poderes constituídos.

São Paulo convivia com um aumento indiscriminado de sua população. Tal aumento, originário desde os tempos logo após a abolição da escravatura – que lançou nas ruas escravos forros e libertos – ao mesmo tempo recebia nas mesmas ruas aqueles que iriam prosseguir realizando o trabalho dos escravos: que eram imigrantes. Os italianos chegaram inicialmente, seguidos de outras etnias e nacionalidades que chegavam em levas da Europa.

Com tantos circulando pelas ruas da cidade o burburinho aumentava, e o ritmo de vida se acelerava, gerando cada vez mais políticas que visavam regulamentar os espaços, gestos e modos de viver a urbanidade, eram denominados códigos de postura. Temas como o trânsito e o barulho na cidade eram tratados periodicamente, e em muitos casos, era patente a tentativa de inclusão do maior número possível de situações passíveis de punição e regulamentação.

Os sons que vinham desta vida urbana eram muitos e variados. Daí que os que estavam interessados em elencá-los tinham lá uma tarefa bem grande. A imprensa em geral colaborava neste sentido, e com certa frequência publicava artigos como o Dr. J. M. de Azevedo Marques, intitulado “A tranquilidade publica perante a Municipalidade”, onde o autor fazia menção a alguns destes sons da vida urbana:

(…) Há dias passados um illustre scientista extrangeiro queixava-se, pela imprensa, com razăo e escarneo, de ser S. Paulo uma cidade insupportavelmente barulhente alludindo ao ruido exaggerado dos bondes, dos automoveis, dos sinos, dos vendedores de jornaes, dos caixeiros de cafés, da cachorrada a uivar, dos pregoeiros ambulantes ensurdecendo, atordoando, causando mau humor, impedindo o repouso, socego, a saude e o trabalho.

(…) Que diferença contra nós, si compararmos isso com o que vimos nas cidades mais agitadas do velho mundo: Londres, Paris, Berlim Bruxelas, Lucerna, Genebra, Vichy (…), onde tudo se passa calmamente, em relativo silencio: os vehiculos năo incommodam pelos ruidos, os sinos săo raros e commedidos, os automoveis fazem “chic” em năo buzinar, ninguem grita, năo há guizos estridentes; e por isso, alli se pode conversar nas ruas, nos cafés, nos vehiculos, nos escriptorios, como se pode repousar, dormir, viver.
(…) Aqui impossível. (…)”[1]

Como sempre a comparação depreciativa tomava como parâmetro o Velho Continente (modelo buscado como referência de civilidade). O articulista ocupa-se de tecer as comparações procurando mostrar quão distante São Paulo estava de cidades e civilizações europeias.

Alguns destes sons vinham de diferentes meios de transporte, personagens urbanos, ambulantes e seus pregões, feitos para chamar atenção ao seu trabalho, ou mesmo de animais que trafegavam soltos por ruas, ruelas e avenidas.

Dentre os instrumentos mais comuns estavam entre outros: o uso de sinos, campainhas além da própria voz do mercador em portas de teatros, praças, e mesmo de porta em porta.

AV. XV de Novembro, São Paulo – década de 1920

O artigo prosseguia em sua minuciosa descrição e se tornava interessante quando se referindo ao trânsito, relacionava a convivência com determinados aspectos do comportamento urbano com a ausência de moral. Ou seja, quanto mais imoral e próximo da barbárie a desqualificação moral mais suscetível ao hábito de sons que perturbavam a ordem alheia. Observe:

“(…) Há é certo, uma parte do povo que se não incommoda com tudo isso; são os insensíveis, os pandegos, os endurecidos e, podiamos dizer, os idiotas, cujas funcções meramente physiologicas e impertubaveis predominam sempre sobre as moraes; comem e bebem sempre bem, dormem sempre bem, riem sempre bem, vagam sempre bem, passam sempre bem, como si o mundo fora só elles. Mas essa minoria de “homens-vegetaes” não merece dictar regras ou servir de padrão aos outros, ás senhoras, ás crianças, aos velhos, aos doentes, aos trabalhadores, aos estudiosos aos sensiveis, aos civilizados. (…)”[2] 

Ritmos e deslocamentos: a cidade veloz

Este mesmo trânsito, considerado caótico, era o centro de duras críticas e revelava um articulista preocupado. Referindo-se ao barulho e a forma descuidada que muitos veículos eram conduzidos e os resultados em números de acidentes, acrescentava:

“(…) A norma –  “é gritar e matar” – o bonde dispara, tocando os tympanos em selvagem Ze-Pereira, e vai esbarrando e esmagando, haja o que houver; o automovel faz a mesma cousa: e assim substitui-se a pericia pelo barulho, entendendo os heróes conductores que buzinando e badalando podem matar livres de culpa e pena. (…)”[3]

Os registros de acidentes de trânsito eram muitos e variados, incluindo batidas de automóveis em outros veículos, em postes ou em outras formas de obstáculos, bondes que se chocavam ou saíam dos trilhos, e atropelamentos – em geral, eram a maioria das ocorrências policiais. Saber sobre tais registros também nos fornecem ao mesmo tempo sobre esta cidade. Relava que havia um número crescente de pessoas circulando pelas ruas e experimentando uma nova forma de vivência: relacionada aos ritmos da velocidade e das deslocações pelo espaço social. Algo que até então não era possível sem as invenções como automóveis, bondes e trens. A convivência com a maior velocidade era algo intrigante, pois se de um lado favorecia deslocamentos para lugares impensáveis em curto espaço de tempo, por outro lado, mostrava que ainda era difícil lidar com atropelamentos, descidas acidentadas de bondes e mesmo dividir o espaço da rua com pedestres, cavalos, carroças, carros, bondes e condutores.

Bonde 41 saiu dos trilhos na rua Carandaí, esquina com a antiga rua Inhaúma, entrando no terreno da Sociedade Amigos da Casa Verde

Os relatos de tais ocorrências em vários casos transformavam-se em inquéritos policiais redigidos por delegados responsáveis nas diferentes circunscrições, tornava-se uma espécie de crônica policial sobre os problemas relacionados ao trânsito da cidade. Uma leitura atenta destes registros nos ajuda a perceber como esta cidade se movimentava e se relacionava com seu entorno, ao mesmo tempo que novos hábitos se instalavam.

Carlos Pimenta, Delegado da 5ª Circunscrição em São Paulo, é um destes que chamo de ‘cronistas policiais’. Sua escrita miúda, recheada de pequenos detalhes ajuda a dar cor e tom às impressões de uma autoridade sobre diferentes infrações ocorridas no espaço da cidade, tentando da melhor forma encontrar argumentos que viessem convencer de culpa ou absolvição as partes envolvidas. São relatos envolvendo crimes de diferentes ordens, em especial os que são relacionados a moral e bons costumes (inserem-se aí os crimes de vadiagem, prostituição, jogo, defloramentos, homicídios, entre outros) além claro, das infrações de trânsito.

Citando algumas destas infrações, o delegado Carlos Pimenta comenta sobre os atropelamentos e a forma considerada descuidada de motorneiros e passageiros conduzirem e se portarem nos veículos que transitavam pela cidade:

“(…) Trata este inquerito da eterna questão dos atropellamentos por vehiculos. Enquanto tivermos leis benignas para o caso, os taes senhores condutores, chaffeurs e cocheiros andarão sempre sem o necessario cuidado, á matroca, a catar as pernas de um pobre mortal, ou mandal-o sem demora para outro mundo (…)”[4]

No caso específico deste inquérito, Carlos Pimenta retomava a questão da ausência de uma lei de trânsito que viesse atender de perto a necessidade de punir eficientemente infratores perigosos. A tônica sobre as leis de trânsito era constante, e em sua fala mais de uma oportunidade retomava este tema, em especial em relação ao número elevado de acidentes envolvendo atropelamentos e/ou imprudência da parte de motorneiros, condutores, passageiros e pedestres.
São os casos, por exemplo, dos seguintes inquéritos:

1)      “(…) É um eterno problema a questão de desastre por automoveis e dia a dia os atropelamentos vão crescendo de modo assustador. Este inquérito trata de mais um, cuja victima é o menor Antonio de Toledo, com 6 annos de idade (…) O automovel que apanhou o menor tinha o nº 2950 e (…) o auto caminhava com marcha acelerada e com pharóes apagados (…)”[5]

2)     “(…) O veso antigo de todos os conductores de vehiculos, nesta Capital, andarem em vertiginosa carreira, procurando a morte para si e para os outros, é coisa que lhes póde tirar. São multados, processados, castigados, afinal dentro de nossas benignas leis e dos nossos liberrimos regulamentos. Mas a attração, a sympatia pela vertigem de corrêr é inevitável. (…) Devido a essa loucura, ou melhor, essa falta de prudencia, este inquerito registra um desastre desta natureza. No dia 10 do corrente, Segunda feira, ás 21 horas, o bonde de passageiros nº 423, na linha Tamandaré, tendo como conductor Abilio Pires, chapa nº 476 e como motorneiro Manoel de Moraes, chapa nº 877, ao fazer a curva da rua Castro Alves para entrar na rua acima referida, por imprudencia absoluta do alludido motorneiro, saltou dos trilhos, subindo no passeio, ficando as primeiras rodas sobre o mesmo (…)”[6]

Carlos Pimenta se coloca como mais um dos que criticavam as leis em vigência na capital e a forma considerada branda de tratamento dos infratores em geral. Em diferentes circunstâncias se refere às leis de trânsito como sendo benignas demais para serem respeitadas.

Além da velocidade e descuido dos condutores de veículos, os inquéritos nos fazem saber sobre a imprudência cometida pelos que trafegavam nas ruas. Um destes refere-se especificamente a distração e ao hábito sempre corrente de saltar dos bondes quando estes ainda estavam em movimento:

“(…) ás 21 horas, João Rebulhedo, que guiava o automovel nº 4016 pela Avenida Brigadeiro Luiz Antonio com destino á Avenida Paulista, seguia atraz de um bond da linha Paraizo quando, perto da rua Conselheiro Ramalho, o conductor Daniel Paes, que se achava de folga viajando neste bond, ao descer delle, em movimento, foi apanhar e ferir este conductor (…)

(…) João Rebulhedo explica em suas declarações que seguia o bond numa distancia de dois metros quando, inesperadamente, saltou delle esse conductor de folga. Sem tempo de evitar o desastre, pois Daniel, ao descer, lhe passou á frente – conseguiu ainda evitar sua morte, com a monobra rapida que fez. (…)”[7]

A prática de saltar dos bondes quando estes ainda estavam em movimento, além da travessia imprudente de pedestres acabaria por levar diferentes propostas à Câmara de vereadores de São Paulo sobre a aplicação de multas. Dentre alguns destes projetos temos, por exemplo:

“(…) Não existe, entre nós, a regulamentação do transito de pedestres. Essa falha é absurda, tanto quanto, no meu entender, essa regulamentação é o ponto de partida para uma boa legislação que venha resolver esse problema. (…) em Londres, (…) qualquer pessoa que atravessar uma rua em momento improprio, não pagará sómente multa; será presa immediatamente.E, si essa imprudencia der origem a um desastre, responderá pela parte dos dannos que provocar (…)”[8]

Abaixo uma imagem no Largo de São Bento, onde é nítido o movimento de subir e descer dos passageiros com os bondes em movimento. Além disso, transeuntes, carros e bondes compartilham o mesmo espaço exíguo, gerando aos pedestres inúmeras chances de atropelamentos quer por um quer por outro.

Bonde elétrico aberto no Largo de São Bento, na capital paulista, por volta de 1930, circulando na linha de São Caetano (criada em 1902 e extinta em 1942)

NO calor das discussões diferentes sugestões surgiam para um problema que não conseguiu no decorrer do tempo uma solução satisfatória.
Prova disso é que já estamos no século XXI e enfrentamos praticamente as mesmas questões, criticas e ponderações.

Destas ocorrências há diferentes registros fotográficos detalhados pela perícia técnica e interessante quanto ao fornecimento dos tipos de acidentes[9], ruas de maiores incidências, e assim por diante.
As imagens tomadas como documentação para incorporar o inquérito revelavam em detalhes a forma como o acidente havia ocorrido: em alguns casos, estas fotografias recebiam anotações em vermelho indicando a trajetória do veículo até encontrar o seu destino contra um poste, um muro ou mesmo outro veículo. As rotinas de acidentes acabaram por instituir uma prática de registros fotográficos para os acidentes que ocorriam pela cidade e revelam mais uma aplicação da fotografia para fins comprobatórios e jurídicos. 

Acidente com o bonde Casa Verde – Penha (55) na rua Japuiba com rua Anhauma (atual rua Antônio Lopes Marin com rua Dr. César Castiglioni Júnior

A lei determinava as velocidades máximas dos veículos motorizados.

Nos termos da lei: “(…) no perímetro central, em ruas e horas de grande transito, dez quilometros e nas demais, vinte quilometros, no perimetro urbano, trinta quilometros e, no suburbano, quarenta quilometros (…)”]10

As velocidades acima descritas procuravam através de uma regulamentação criar formas de diminuir os problemas ligados às altas velocidades dos carros, como batidas e atropelamentos muito correntes no período. Os espaços de regulação e tráfego colocaram à cidade muitos debates e o consenso nunca foi obtido. 

Distantes no tempo e próximos na dificuldade, temos a Prefeitura de São Paulo sempre alterando limites de velocidade nas marginais alegando exatamente os mesmos problemas de mais de um século atrás: excesso de velocidade, acidentes e atropelamentos. 

De fato, uma relação de poderes e fascínios entre homens, máquinas e leis. Nem sempre conseguem andar juntas e em benefícios de todos. 

*
Post extraído de minha Tese de Doutorado, intitulada: “Imagens de cidade : cliches em foco… São Paulo e Lisboa (1900-1928)“, defendida na UNICAMP, em 2002.

** Referências:
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade”. Anais do Museu Paulista [online]. 2007, vol.15, n.1, pp.115-186. ISSN 0101-4714. 

***Notas Bibliográficas:

[1] Marques, J. M. Azevedo. “A tranquillidade publica perante a Municipalidade”. In: Jornal O Commércio de S. Paulo, 29/04/1914.[2] Idem.
[3] Ibidem.
[4] Inquérito redigido por Carlos Pimenta, Delegado da 5ª Circunscrição de São Paulo, em 16.08.1922.
[5] Idem.
[6] Ibidem.
[7] Inquérito redigido por Armando Soares Cayuby, Delegado da 6ª circunscrição, em 08.02.1922
[8] Projecto nº 3, de 1924. Coleção Actos e Decretos do Municipio.
[9] Os registros fazem parte da coleção existente nos Arquivos do Museu do Crime, da Academia da Civil  de São Paulo.  
[10]  Lei nº 2.264, de 13 de Fevereiro de 1920. Coleção Actos e Decretos do Municipio.

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