Por: Eliana Rezende Bethancourt

Sempre gostei de pensar sobre como uma fotografia funciona a partir do enquadramento que o fotógrafo nos oferece. O fotógrafo hábil é aquele que consegue recortar e enfocar partes que deseja destacar ou omitir. O enquadramento revela ao mesmo tempo que esconde. No recorte dado pelo fotógrafo há o que se quer mostrar, e todo o resto compõe o que chamamos extra-quadro. Tudo o que não interessa ao olhar fotográfico é simplesmente silenciado pela ausência imagética. A forma de enquadramento e enfoque trará ao observador a sensação de que não falta absolutamente nada. Tudo está ali.

A mesma lógica pode ser usada a partir dos enquadramentos de nossas existências: o que pomos em relevo e o que simplesmente omitimos ou escondemos.

O mundo que nos cerca é um palco cenográfico, onde cenas são justapostas e ganham alguma relevância, enquanto outras ganham sombras e desimportância.

O período de isolamento social conseguiu oferecer a cada um de nós um ponto referencial de observância do mundo e de expressão por ela: nosso olhar, nossas janelas, varandas, portões.

De forma especial e totalmente inesperada, dada às convulsões sociais pelas quais passamos, nossas janelas transformaram-se em camarotes, ora para simplesmente observar, ora para aplaudir e se manifestar. Historicamente, estes espaços de vida privada não tinham comunicação direta com a rua, mas eram sempre vistas como forma de uma vista indireta e contemplativa. Lá fora a rua estava distante e a janela oferecia a possibilidade da vista privilegiada do interior para o exterior, mas não o contrário disso. A solidão contemplativa era garantida por vidraças, venezianas, cortinas. Todo um aparato para velar, esconder. Do outro lado da rua apenas um quadro pendurado na arquitetura velado por cores de um tecido feito para ser cortina e barreira.

Crédito: Lionel C. Bethancourt

A experiência do isolamento social estendeu uma pausa imensa em vidas, planos, existências. Esperar…esperar… passou a ser o empreendimento de todos. A mobilidade quase infinita, deslocamentos rápidos, migrações simplesmente foram freados. Emparedados, enquadrados e fechados… eis no que o mundo teve que se converter. O confinamento se colocou como questão de sobrevivência, e com isso imperou sobre nossas vontades.

Mas nem tudo precisava ser contido. Novos meios foram encontrados para resignificar nossas existências, descontentamentos, frustrações, bem como momentos de contentamento, alegria, gratidão.

Sob esta ótica que neste período de isolamento as janelas e varandas converteram-se em espaço de troca. Uma nova estética se pôs, o mundo do interior de nossas casas revelou-se. Houve aplausos, músicas tocadas ou cantadas, buzinaços, ‘panelaços’ e até projeções de imagens, protestos e palavras de ordem, irreverências e muito ativismo. As janelas ofereciam com isso, o espetáculo da presença, da vida, do brinde, da resistência, presença das ausências…da procura do Outro em todas às suas formas ou solidariedades de objetivos ou ameaças comuns. Eram coletivos na expressão geral, mas ao mesmo tempo anônimos em nossas individualidades. As interações nos davam uma identidade através de pautas e solidariedades comuns.

As trocas simbólicas decorrentes da impossibilidade dos contatos físicos surgiam de forma espontânea e quase viral. As janelas, convertidas em abertura para o mundo e não mais como uma tela, um quadro, um enquadramento para ver ou se esconder contemplativamente. Tornaram-se um espaço para o encontro, para a troca, para a conexão num mundo onde a conexão virtual não basta às emoções, onde as trocas podem ser feitas de formas mais intensas e interativas. A criatividade encontrou muitas formas de manifestação: foram brindes, cantos, palmas, cores, apresentações musicais várias. A janela abria-se para o mundo e convertia-se em passagem/exposição. É estranho pensar nisso, já que parecia ser ponto pacífico que as pessoas estavam muito satisfeitas com suas redes sociais e contatos virtuais. Mas a ausência das ruas e seus espaços sociais de trocas e vivência mostraram o quanto ainda precisamos de tudo isso.

O mesmo se dá com a ocupação do espaço urbano/social: as projeções tão em voga, em especial na cidade de São Paulo revelavam isso de forma fantástica: imagens se projetavam de forma gigante em outros prédios que também se manifestavam. Uma estética diversa de resistência, ocupação e projeção digital e real no Outro os seus desejos e frustrações. O espaço social ganhava outra dimensão a partir do enquadramento/exposição nas janelas e varandas das cidades. A projeção encontrava na arquitetura bruta de fachadas e concreto a tela perfeita para funcionar como retrato e exposição. Sem circundar ou limitar a aparição a imagem extrapolava os limites construtivos e podia espalhar-se por outros prédios. Um diálogo interessantíssimo de desejos, vontades, protestos e “gritos” de silêncio povoado apenas pelas imagens. A imagem neste sentido era única, mas as vozes que a acompanhavam eram coletivas, deixavam de ser o indivíduo para ser o condomínio, o bairro, a cidade…o país.

Daí o sentido de ocupação do espaço urbano como campo de lutas e resistência. De reivindicações e protestos, de solidariedades…

Mas e aquela tão presente e às vezes inacessível “janelas da alma?”. Creio que aqui foi o ponto onde muitos definitivamente tiveram muitos problemas com o isolamento social. O confinamento levou muitos a ter que recolher-se para seu interior e ver o que habitava em suas janelas interiores. O contato com esta alma habitante, para alguns, foi carregada de percalços: conviver com o universo interior pode ser muito difícil. Longe das vozes externas que nos tiram a concentração e distraem, as vozes da alma podem ser muito ruidosas. Tão ruidosas que simplesmente não se consegue calá-las. A experiência da solitude para alguns é praticamente impossível.

A solitude é aquela experiência de estar consigo mesmo, mas preenchido, não há a sensação de estarmos sós. O pensamento é companheiro e o quê os olhos veem e o corpo que sente são os alimentos desta alma. São interlocutores e incentivadores da profunda existência interior. Para estes, a experiência deste silêncio interior é bem vindo e o período de isolamento social favoreceu experiência agradáveis de estar consigo mesmo. Para outros, foi a sensação de aprisionamento solitário, melancólico e até depressivo que imperou.

Como vizinhos de janelas geminadas, a alma pode muito bem relacionar-se com os de dentro e os de fora, dependendo de como prioriza e sente todos os estímulos que lhe chegam. A janela que abre para o interior também é uma perspectiva, um enquadramento de sua atitude perante a vida. Ao fazer isso, como o fotógrafo enquadramos e enfocamos o que para nós é importante, e simplesmente omitimos ou desconsideramos o extra-quadro. Não acho que se precisa viver uma mentira. Basta apenas entendermos que nossas perspectivas tem contextos e se inscrevem dentro dele. Pôr em evidência alguns aspectos não significa que tudo o que está no extra-quadro não existe. Quando mudarmos o olhar tudo estará lá. Por isso é bom conhecer e conviver com todas as nossas mobílias interiores.

Provavelmente isso não se manterá, e muito em breve retornaremos aos nossos medos, inseguranças, trancas, vidraças, cortinas, telas de proteção. Mas teremos experimentado, ainda que brevemente, uma forma de relação interativa com uma sociedade inteira a partir não de uma tela de computador, mas de uma janela que se abre e deixa entrar.

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