Por: Eliana Rezende*

Pare, pense e responda:
Você vai fazer uma longa viagem, somente poderá levar uma mala de mão com alguns pertences. O quê você levaria, quais objetos seriam sua escolha? O que seria fundamental?

Em 1995, a Secretaria de Saúde do Estado de New York, desativou o Sanatório Mental de Willard, em Syracuse. um edifício de arquitetura vitoriana que abriu suas portas em 1893. Antes de concluir o fechamento, o funcionário Bev Courtwright, foi incumbido de fazer uma vistoria para determinar o que poderia ser recuperado (antiguidades, mobília, etc.). Ao executá-la, o funcionário abriu a porta de um dos sótãos, e descobriu um tesouro: uma coleção de mais de 400 malas (429, mais precisamente) com pertences de antigos pacientes da instituição, datando de 1910 até fins dos anos 1960.

Craig Williams adquiriu as malas para o Museu do Estado de New York e as incorporou à Coleção Permanente da instituição. No ano de 2003 ela originou uma exposição que o fotógrafo Jon Crispin pode ver e interessou-se em documentar através de registros fotográficos tais pertences. Contar um pouco desses pacientes que, a partir de um dado momento de suas vidas foram internados e viveram ali até suas mortes. Poderiam ser trilhas para as histórias prováveis desses pacientes a partir daquilo que carregaram consigo no momento de sua internação.

malafechada

A escolha deste argumento para meu post não foi aleatória. O caso aqui utilizado como mote para o post é exatamente o quê alguém que estava sendo confinado em um manicômio levaria consigo… ou quem sabe o fariam levar para uma viagem que provavelmente não teria volta.

Belíssimo sob esse aspecto, pois aponta uma certa quantidade de valores tangíveis e intangíveis e que só fazem sentido ao seu possuidor. De qualquer forma, podemos inferir possibilidades, intenções, trechos de uma história nem dita nem escrita, apenas disposta em retalhos como num caleidoscópio.

De outra parte, e não menos sedutor para mim que sou historiadora e também arquivista, é o sentido que tal documentação de cultura material pode ajudar a tecer trilhas de existências que se foram. Achei de uma criatividade sensível incrível a proposta do artista e a forma delicada com que lançou luz aos objetos para que, combinados entre si, fossem crônica do pensado e vivido por um paciente recluso devido aos fantasmas mentais que os habitavam.

São imagens fortes, apesar do ensaio ter um quê muito sensível.
Olhar por essas frestas das histórias por trás dessas malas e de seus pertences, saber sobre seus pacientes, seus nomes e histórias pregressas é mesmo uma experiência muito forte e cheia de significados.

Quando pensamos no caso de pacientes de manicômios desse período podemos de fato encontrar historias de pessoas que foram deixadas ali por abandono ou ganância. Era comum pessoas sãs serem entregues a essas instituições por seus familiares, como forma de mantê-las reclusas.
Mas há também aqueles que, de fato, tinham do seu passado apenas sua mala. Suas memórias (bem mais precioso que podemos ter) já haviam sido perdidas.

Além disso, a fotografia, para mim, também tem um sentido muito especial.

Sou historiadora, conservadora e restauradora de fotografias dos séculos XIX e XX.
E como historiadora, lido muito com as memórias das pessoas e sei o quanto objetos pessoais são elementos de ligação com uma trajetória, um passado, uma vida. Despertam sentimentos e emoções que muitas vezes não cabem entre duas linhas. São carregadas de sentimentos e portam como poucas coisas aquilo que é precioso para cada um.

E é nesse sentido que o ensaio fotográfico é tão forte.
Somos alçados a estas vidas através de seus pertences pessoais. As malas são por assim dizer metáforas de vidas vividas que se foram, sobram como repositório de vestígios, pistas de um passado diverso.
É como se nós próprios estivéssemos embarcando em uma longa viagem.

Lógico está que esta viagem dependerá de onde partimos, com qual olhar, e com quais inquietações. Por isso a diferença do olhar do historiador, do escritor de ficção, ou mesmo de um psicólogo verá de maneira diferente do que um jornalista olhando para os mesmos objetos.
O fundamental é termos a dimensão exata do que este ensaio revela: a humanidade vivida e experienciada deixada nesses pequenos vestígios.

Através do singelo olhar do fotógrafo, foi-nos possível conhecer o conjunto de objetos, e descobrir neles indícios e links da vida vivida e sentida desses pacientes. Seu ensaio fotográfico tornou-se, pelo seu conjunto, uma narrativa.

Convido-os a vir comigo e ver o resultado desse ensaio. Preparei uma apresentação para que tenham a oportunidade de perscrutar algumas dessas muitas vidas e seus fragmentos:

Conheça mais o projeto e seu idealizador clicando aqui:

Na área de História chamamos de Cultura Material o trabalho de ver nesses objetos pequenas notas de existências e pequenos trechos de possíveis longas histórias.
Da reunião desses objetos tem-se uma micro-história.
Os objetos assim, possuem uma biografia, uma trajetória que o insere em um determinado contexto.

São como pontos que tecem um fio… cada fio conta uma história.

Como destaco em um artigo que escrevi sobre a fotografia e cultura material, que você pode ler na íntegra aqui, de onde o trecho abaixo foi tirado:

“Seria bom frisar que, no caso do documento fotográfico, temos sempre um objeto único e, portanto, com características muito peculiares. No entanto, se tecermos a rede das tramas que nos trouxeram a estes objetos, sozinhos ou em coleções, chegaremos a horizontes mas amplos.” (Rezende, 2007)

Lidar com tais documentos tridimensionais requereu por parte do fotógrafo um cuidado extremo, e mais do que tudo: apoio interdisciplinar de profissionais de várias áreas. Acompanhe um vídeo produzido para mostrar como foi o trabalho de produção do ensaio fotográfico:

Todo esse trabalho feito pelo museu de identificar cada um dos pacientes e suas respectivas malas podem ser conhecidos, eis o link.
Gostaria que percebessem porque a História é algo tão fascinante para mim.
Na realidade, tais fragmentos abrem janelas de possibilidades que fornecem pontes de acesso, elos que ligam a um outro tempo. Sem estes toda a leitura do conjunto ficaria dificultada.

Ao fotografar tais objetos, o fotógrafo nos direciona o olhar. Fragmenta e enfoca o tema para fixarmos nossa atenção. Depois desse momento, todas as leituras são possíveis a partir do repertório, interesses e indagações de cada um.
Um historiador olhará de forma diferente que um autor ficcional, por exemplo. Cada um lançará viés próprio.

As imagens nos remetem a uma certa intimidade de um tempo e de determinadas histórias que estavam perdendo suas referências, identidades e memórias. Confinadas num espaço de reclusão podem ser alcançadas pelos rastros e vestígios que deixaram e que traziam de uma vida pregressa, que teve que ficar do lado de fora dos muros de sua reclusão.
Muitos deles deixaram suas vidas ali mesmo na instituição.
Nunca mais retornaram às suas origens.

Por serem registros tomados com sensibilidade nos trazem uma beleza quase roubada de uma existência que se foi. Uma história que passou.

O projeto do fotógrafo de fato nos permite caminhar por esse horizonte de análise de documentos e o qual convencionamos chamar de Cultura Material. Lógico que aqui não é uma aula, mas é um meio de conhecerem um pouco outras formas e fontes documentais que servem à pesquisa e à organização documental.

Percebam como ‘documento’ é uma categoria muito mais ampla do que simplesmente a que o senso comum costuma imaginar?

E, ao término, uso este post para indicar-lhes como se faz um trabalho de curadoria. Não apenas no que tange ao trabalho do fotógrafo e curadores da exposição no museu, mas para o meu próprio caso.
Notem que aqui vocês tem exemplificado como se realiza a curadoria de conteúdos. Tão em voga enquanto produto, mas muito longe de ser feito corretamente.
Espero ter podido mostrar como a curadoria de conteúdos acontece de acordo com a metodologia que indiquei em outro post, intitulado “Curadoria de Conteúdos: O que é? Quem faz? Como faz?”

Além disso, contribuiu para toda a construção do conteúdo e mesmo do ensaio fotográfico algo fundamental a qualquer profissional: saber usar a empatia. Sem ela provavelmente você não teria terminado a leitura deste post.

Encerrando, gostaria de saber:
“Conseguiu decidir o que tua mala conteria?
Que pistas deixaria para investigações e elucubrações futuras?
O que teus vestígios revelariam?
Qual seria a narrativa que tua mala possibilitaria?”

E de tudo o que viu? Qual a sua narrativa?

Como podemos ajudar?
Na ER Consultoria possuímos metodologia própria, conhecimentos testados e experiência prática para auxiliá-lo na melhor de tratar acervos documentais que possam compor patrimônio cultural documental, dentre eles Projetos de Preservação e Conservação Documental e Fotográfica.

Veja nosso Portfólio de Cases e o que nossos clientes tem a dizer.

*
Este post é uma versão revisada e atualizada da versão publicada originalmente no Blog Pensados a Tinta sob o título: “Como se constrói uma Narrativa Fotográfica?

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Referências:

Ginzburg, Carlo. “Mitos, Emblemas e Sinais – Morfologia e História“. São Paulo, Companhia das Letras, 1986.
Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. “Memória e Cultura Material: Documentos Pessoais no Espaço Público”.
Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. “A cultura material no estudo das sociedades antigas“.
Rede, Marcelo. “Estudos de cultura material: uma vertente francesa“.
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Construindo imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade“.
Rezende, Eliana Almeida de Souza. “Um Ensaio de Ego-História

Créditos:
Todas as imagens aqui apresentadas são de direitos autorais do fotógrafo Jon Crispin

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8 thoughts on “Fotografia como Documento e Narrativas Possíveis

  1. “As vidas que deixaram para trás”, começa o título de uma das muitas exibições do evento. Sim, pois foi um evento o documentar as malas largadas, tanto quanto o foi enchê-las e, até mesmo, o fato de eu escrever e você ler este comentário sobre ele. Eventos que compõem, e ao mesmo tempo narram acontecimentos e vidas. Não importa se nem conseguimos entender o código no qual foram organizados. Os elementos estão lá, os códigos criados também. Somos nós, outros, que cometemos solecismos ao tentar ler e traduzir: as vidas que deixaram para trás.
    Silentes testemunhos de vidas ainda muito mais complexas pela patologia e o isolamento social imposto. Dados inocentes que mal conseguimos enfrentar de gente (semelhante a nós) internada nessa instituição para o resto de suas vidas. O resgate, pela descoberta, nos obriga e desafia à leitura e contemplação.
    E, nos avisa: “Eu fui como você, ontem”.
    Obrigado pela ótima, e inusitada, aula de Curadoria.

  2. Enviei o link para minha amiga que está finalizando um texto sobre as cartas e fotografias que seu pai deixou qdo foi soldado na segunda guerra. Adorei o texto

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