Por: Eliana Rezende Bethancourt

Recentemente nos defrontamos com mais um ataque ao meio ambiente em relação a um decreto que entre outras atrocidades autoriza a destruição de qualquer tipo de caverna para a construção de empreendimentos considerados de “utilidade pública”. Bastariam apenas supostas compensações e em virtude do benefício econômico qualquer outra perda seria justificada.
Até a assinatura deste decreto presidencial nº 10.935/2022, as chamadas cavidades subterrâneas de alta relevância, estavam inseridas sob a proteção de unidades de conservação. Ao ser assinado o decreto a proteção que estas unidades teriam contra tais empreendimentos fica anulado. Não apenas isso: até mesmo o cinturão em torno destas cavidades ficam sob risco. A situação fica ainda pior quando sabemos que boa parte destas cavidades estão situadas em áreas de mineração, o que levaria a sua completa extinção.

Enrico Bernard, que também é presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros (SBEQ), voltada para pesquisa sobre morcegos explica o que tudo isso pode significar: “Se baixarem uma norma que mineração é atividade de utilidade pública, isso abre a porteira para que os órgãos ambientais estaduais passem a considerar toda a atividade de mineração de utilidade pública e possam autorizar os impactos nas cavernas de máxima relevância. A boiada está em curso”.

Para entendermos o perigo deste conceito de declaração de “utilidade pública” por parte do empreendimento basta vermos o leque amplo a que se refere: sistema viários, mineração, radiodifusão, telecomunicações, energia, saneamento. Se o empreendedor “provar interesse público” está autorizado a simplesmente destruir e depois quem sabe fazer uma “compensação”. Mas a importância destas cavidades está exatamente por serem singulares e únicas, e portanto, por mais que se tente NUNCA uma substitui ou compensa a outra.

É importante pontuar que as chamadas cavidades naturais subterrâneas (cavernas) apesar de serem dividas em máxima, alta, média e baixa relevância apresentam diferenças substanciais entre si, e NENHUMA delas é idêntica à outra. Em geral, estas cavidades encontram-se em locais que compõem em suas proximidades até sítios arqueológicos. Um exemplo recente deste tipo de local foi a necessidade de embargo de uma obra que tinha como objetivo a construção de uma fábrica da cervejaria Heineken em Minas Gerais. A obra foi embargada pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) por risco de danos ao sítio arqueológico onde foi localizado o crânio de Luzia, o mais antigo fóssil humano encontrado nas Américas.

A importância destes espaços e seu entorno são essenciais para que diversas formas de vida se desenvolvam. Além disso, os espaços internos dessas cavidades de alta relevância possuem camadas de informações e registros de outras eras e dos seres que lá habitaram. São documentos vivos de um outro tempo. Guardam segredos de séculos de história. São portanto, Patrimônio Natural e Ambiental, e em vários casos também Patrimônio Arqueológico.

Por exemplo, a SEBEQ (Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros) também se posicionou contra as mudanças e afirmou que elas gerarão “impactos enormes e irreparáveis”:
Literalmente, milhares de espécies que vivem em cavernas, incluindo espécies criticamente ameaçadas de extinção e espécies hiperendêmicas (com ocorrência em uma única caverna, por exemplo) estão em risco mais elevado com a publicação do Decreto 10.935. Mais além, os serviços de ecossistema prestados por estas cavernas como, por exemplo, o abastecimento de aquíferos e a contenção de pulsos de inundação, poderão ser gravemente comprometidos“, disse em nota emitida.

Não bastasse isso, o decreto também alterou as definições do seja uma cavidade de alta relevância. A redução de critérios foi de 11 para apenas 7 quesitos. Mais grave ainda é retirar da mão de técnicos do ICMBio, através do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (CECAV), avaliar as cavidades e autorizar ou não o que quer que fosse. Agora esta responsabilidade fica nas mãos de órgão licenciador, ou seja, fica nas mãos de quem não tem as devidas condições técnicas de avaliação. E, nem imagina quais sejam.
Mas fica ainda pior: foi retirada a obrigatoriedade de se preservar área de 250 m entorno da caverna (este diga-se de passagem, era uma das queixas recorrentes de mineradoras. O presidente da SBEQ comentou: “É uma mudança de legislação que atende como uma luva os interesses das mineradoras”, acrescenta. O pesquisador questiona ainda a falta de transparência para a elaboração do decreto. “Quem é o responsável por essa redação? Porque os setores da sociedade interessados não foram chamados para essa discussão? Esse decreto foi unilateral, sem discussão técnica nenhuma”.

Dito tudo isso, é fundamental compreendermos a importância de, como profissionais ligados à diferentes áreas entre Ciências Humanas e Aplicadas e as Ciências da Natureza, termos a dimensão do que significa a preservação e conservação destas unidades consideradas e definidas como Patrimônio Natural.

Do ponto de vista das definições que se aplicam à Preservação e Conservação, um aspecto muito caro a tais profissionais é de considerar que tais conjuntos formam o que na minha área de atuação são conjuntos documentais. Trazem como inscrições de um passado remoto sua ancestralidade, bem como sua riqueza inscrita nos biomas que mantém, nas camadas de rochas e nos cursos de águas que juntos compõe um habitat único, e em alguns casos, intocados há séculos.

As rochas e seus sedimentos no interior destas cavernas são testemunhas de milhares de anos de história podem ser “lidas” por meio dos elementos químicos que são depositados pela água. Como em textos e subtextos trazem informações sobre a formação deste ambiente, seu clima e o conjunto de condições que propiciaram seu surgimento desde um passado longínquo até os dias de hoje. Estão carregados de informações sobre um passado que só podemos alcançar por meio de sua mediação.

Para além disso, tais cavernas podem se converter em grandes depósitos de fósseis e outros materiais arqueológico exatamente por sua função de abrigo para diferentes animais e seres humanos. Equivalem a grandes acervos que depositam diversos tipos de informação em seu interior.

A degradação que temos assistido em diferentes Patrimônios, sejam eles Culturais, Documentais, Naturais ou Arqueológicos, nos mostram que cada vez mais precisamos entender e lutar para que sejam mantidos para as gerações vindouras. Mantê-los e protegê-los deve ser missão número um de quem compreende seu papel de Responsabilidade Histórica, Social e Civilizacional.
Infelizmente, interesses escusos, imediatistas e econômicos se sobrepõem ao que deveria ser o interesse social mais geral e abrangente e o compromisso de preservação cultural da humanidade em seu sentido mais amplo.

O tema pertence a todos, e só será devidamente tratado e cuidado se entendermos que, enquanto profissionais mesmo de áreas diversas, temos que saber de que forma auxiliar nos debates de educação patrimonial desde muito cedo. Só formando gerações de pessoas que entendem a complexidade do humano e da natureza que podemos de fato fazer a diferença.

Quando permitimos que patrimônios sejam destruídos pelo fogo, pelo abandono, pela ingerência, descaso ou ganância estamos fadados ao esquecimento.
Tempos atrás escrevi um outro artigo onde falei sobre a destruição de vários patrimônios culturais/documentais de nosso país. Intitulado “Patrimônio Cultural e Responsabilidade Histórica: uma questão de cidadania” abordei os tristes episódios do Museu Nacional, Museu da Língua Portuguesa, Instituto Butantã, Arquivo Histórico do Hospital do Juqueri, Tribunal de Justiça de São Paulo, Cinemateca, para ficar em apenas alguns exemplos.
Em todos estes casos, ficou claro que a destruição NUNCA acontece em um determinado dia ou ano. Em geral, o abandono, o descaso vão atingindo o local de forma gradativa, sorrateira e ininterruptamente até que um dia o ‘sinistro’ acontece. O que é uma inverdade, já que em todos os casos os sinais são claros e políticas de abandono eram diuturnamente aplicadas pelos que teriam a obrigação de zelar e proteger estes patrimônios.

Todos os patrimônios pertencem a Humanidade. E, portanto, cuidar deles deveria significar responsabilidade de cada cidadão: cobrando, fiscalizando e agindo sobre os que devem fazer seu trabalho.

Como em todo debate, não há consenso entre conservacionistas e preservacionistas em assuntos relativos ao ambiente e a natureza. Tal como ocorre na área de Arquitetura e Monumentos existem basicamente duas linhas diametralmente opostas.

Explico:

Os Conservação aplicada a este debate de Patrimônio Natural possui uma atitude de que pode-se fazer uso de recursos naturais de forma responsável e parcimoniosa, no sentido de compreender que os recursos são escassos e finitos. Não colocam objeção à exploração dos recursos naturais com diferentes fins. Como em todos os casos, temos o que são criteriosos e há os que simplesmente barbarizam fingindo ser um conservacionista consciente.
De outro lado, há os preservacionistas que possuem um olhar bem mais radical, que seria manter tais locais intocados sem a permanência ou interferência do elemento humano.

Diferente do que ocorre com Patrimônios Documentais e Culturais, muitas vezes podemos ter uma estratégia híbrida e mesclar conservação e preservação, resultando no que chamamos de conservação preventiva. Ações constantes realizadas no tempo que previnem deterioração e podem inclusive prevenir restaurações.

Por não ser da área de Ciências da Terra tenho dificuldades de opinar sobre o que fazer aqui. Mas sei que permitir um uso desregrado e sem critérios levará a perdas irreparáveis e permanentes deste Patrimônio. E contra isso devemos mover todas as formas de debates e esforços.

A situação em torno de decreto que põe em risco as cavernas me fez sentir a mesma sensação que tenho diante de um acervo que está em vias de ser destruído. Comparo tais cavernas como verdadeiros tesouros de um outro tempo e como documentos de uma história que há muito se passou, mas que ao mesmo tempo interage e garante vidas futuras. Perde-las por ignorância ou ganância é uma temeridade.
Sinto como se estivéssemos diante da iminência de uma destruição em série e completamente irreversível se ficarmos passíveis a isso.

O mesmo aconteceu e tristemente ainda esta ocorrendo com os incêndios na Amazônia, onde fauna e flora ardem e exemplares vivos da nossa farmacea estão sendo completamente dizimados. São igualmente acervos vivos gigantescos de espécimes que ainda não estudamos, catalogamos ou deciframos e que poderão estar extintos. A nossa grande biblioteca verde está simplesmente virando cinzas.

Os acervos e arquivos não precisam estar fechados em instituições, em arquivos ou bibliotecas. Podem ser muito mais amplos e abrangentes. Entender tudo o que nos rodeia como um grande acervo vivo deve nos inculcar um sentido de responsabilidade cidadã. O que significa dizer que precisamos ter um olhar abrangente com o que ocorre em nossa volta e o quanto somos responsáveis por tais perdas, quer como profissionais, quer como cidadãos conscientes.

Como a ER Consultoria pode ajudá-lo?
Na ER Consultoria possuímos metodologia própria para utilizar as informações contidas nos documentos em diferentes tipos de acervos e/ou arquivos para Projetos de Memória Institucional com vistas ao fortalecimento de Identidade e Cultura Organizacional em empresas de diferentes segmentos e suas áreas de atuação. Além de ofereceremos metodologias e técnicas adequadas para a Preservação e Conservação de Acervos e seus suportes físicos ou digitais.

Se você possui dúvidas sobre como tratar seus diferentes patrimônios entre em contato e encontraremos uma forma de auxiliá-lo quer por uma Assessoria Técnica Especializada ou por meio de Capacitações Técnicas ao seu corpo de profissionais.

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* Referências:
Convenção para a protecção do património mundial, cultural e natural
Choay, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Ed. Unesp, 2001
Zanirato, Silvia Helena e Ribeiro, Wagner Costa. “Patrimônio Cultural: a percepção da natureza como um bem não renovável”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 51, p. 251-262 – 2006 (acessado em 20/01/2021)
Jornal da USP, 16 de Julho de 2021, matéria de Herton Escobar publicada com o título: “Cavernas do Brasil: um tesouro subterrâneo a ser descoberto, mas já ameaçado“.

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