Por: Eliana Rezende Bethancourt

Por muitas vezes a cidade emprestou à literatura cenários para seus escritos. É no espaço destas que enredos podem ser criados, personagens transitam e se relacionam. Ao mesmo tempo, a cidade é palco de relações e tensões que podem trazer à escritos dimensões diversas de perspectivas.  

A proposta aqui é aliar todos os interesses acima com um passeio ficcional por imagens escritas e pintadas de cidades e personagens inusitados. 

Serão duas trilhas que te levarão por diferentes construções imagéticas, arquitetônicas e visões de mundo de cidades. 

Labirintos de possibilidades do olhar.  

City #8: Vaddooi (David F): uma cidade autossustentável

A licença para abordar dessa maneira cidades vem de um italiano que nasceu em 1923. 
Ítalo Calvino é o seu nome. Seu argumento não poderia ser mais inusitado: o que contaria um mercador veneziano, o mais famoso de todos, a um imperador tártaro? Estamos falando de Marco Polo e suas descrições de cidades e aventuras do império mongol a Kublai Khan, estimada em torno do século XII. As descrições arquetípicas dão-nos vistas de cidades imaginárias e, portanto, invisíveis. 

O encontro que surpreende pela natureza do diálogo descritivo, traria à tona imagens e tons de 55 cidades pertencentes ao império tártaro, narradas e pintadas poeticamente pelo mercador ao imperador confinado e recluso em seu castelo, curioso por saber sobre quais eram as dimensões de seu império. 

E assim surgiam imagens caleidoscópicas de cidades e mundos…de vidas e relações urbanas.
Uma narrativa que coloca em causa que o urbano transcende em muito sua arquitetura e que são os habitantes e as relações que tecem com seu espaço que dão o sentido de cidade. É por isso que cada uma delas possui tantas características e peculiaridades que podemos dizer que possuem alma.

Referindo-se por exemplo a uma de suas cidades descritas a Kublai Khan, Marco Polo nos deixa saber a relação que tais cidades possuem com as Memórias. Em uma nota sobre a cidade de Zaíra lemos:

“(…) A cidade se embebe como uma esponja dessa onde que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras” (…).

Este olhar sobre as cidades é revelador, pois nos faz pensar que a cidade tem a sua escrita, e esta é dada por todas as intervenções que como cicatrizes vão se sobrepondo sobre seus solos e geografia. Todos os seus ângulos edificados, contornos de ruas, caminhos e construções falam dela e sobre as pessoas que a habitam.
Estranho pensar que a cidade imaginária de Zaíra tenha tanto a nos dizer sobre as nossas cidades. Nossas cidades também não contam sua história elas contém o seu passado a partir do que temos marcado em cada uma delas.

Pergunto-me o que fazemos quando as nossas cidades capitalistas ocidentais ganham caminhos autofágicos e simplesmente consomem o que existe de registros do passado. As novas edificações se sobrepõe às cicatrizes existentes e vão apagando por sobreposição. Somente permanecendo as camadas do tempo em suas construções.

Leônia é outra cidade interessante. É uma cidade que se refaz a si própria todos os dias. Se em outras cidades a relação se dá pelo que se esquece ou lembra, em Leônia a relação se dá com o que se joga fora. Se metaforicamente podemos pensar sobre valores e apegos, no campo material Leônia aproxima-se de uma concepção usual nas nossa cidades de que não temos que nos preocupar com o lixo que produzimos. Temos a falsa sensação de que tudo está novo e pronto se o passado for jogado fora. Vejam a descrição:

(…) Nas calçadas, envoltos em límpidos sacos plásticos, os restos de Leônia de ontem aguardam a carroça do lixeiro. (…) O certo é que os lixeiros são acolhidos como anjos e sua tarefa de remover os restos da existência do dia anterior é circundada de um respeitoso silencio, como um rito que inspira devoção, ou talvez apenas porque, uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém mais quer pensar nelas.(…)
O resultado é o seguinte: quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas do seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente em sua forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e de todos os dias e anos e lustros”.(…) A imundície de Leônia pouco a pouco invadiria o mundo se o imenso depósito de lixo não fosse comprimido, do lada de lá de sua cumeira, por depósitos de lixo de outras cidades que também repelem para longe montanhas de detritos. (…) Os confins entre cidades desconhecidas e inimigas ~soa bastiões infectados em que os detritos de uma e de outra escoram-se reciprocamente, superam-se, misturam-se. (…)


Marco Polo, tecendo um verdadeiro labirinto discursivo trazia magia e encantamento à cada cidade e suas características dispostas em blocos temáticos (as cidades e a memória, as cidades e o desejo, as cidades e os símbolos, as cidades delgadas, as cidades e as trocas, as cidades e os mortos, as cidades e o céu…). Todos perfilados com nomes e arquétipos femininos.

City #6: Uaeinn (Katie D): uma cidade de clones

A escrita às vezes, possui essa magia de “pintar” imagens e nos  transportar para elas, nas palavras de Claudio, nas “Cidades Invisíveis” de Calvino: “ser siderado é mesmo uma delícia!”. 

As cidades descritas ganhavam contornos por suas ruas, por suas linhas curvas ou retas circundando espaço e lugares, ou por ângulos que compunham ruelas e pontes ou enquadramentos dispostos por janelas, nos seus entalhes como cicatriz, nas suas pedras como mosaico.

A narrativa de Ítalo Calvino nos dá essa sensação de escrita fácil e fluída. Uma escrita construída a partir da concretude imaginativa de perspectivas e olhares. 
De todas as suas descrições, talvez você seja capaz de encontrar uma cidade para chamar de sua.
Experimente!
Descubra Calvino clicando aqui e passeie por ruas e construções de suas cidades invisíveis, descortinadas por um personagem único e sensível.  

Conheça e deixe-se encantar por Isaura, Cecília, Cloé, Zora, Adelma, Otávia, Fedora, Zoé, Olívia, Leandra, Eudóxia, Clarice, Leônia, Irene, Zaíra, Olinda, Raíssa, Teodora, Berenice, entre tantas outras. 
Mas se são de imagens que estamos falando, acrescento outras feitas como ilustração. 

City #4: Ukivy (Vicky D): as sementes em seu tempo

São as Cities of You onde imagens as imagens ficcionais de Calvino ganham tons oníricos.  O trabalho é de Brian Foo, artista e cientista da computação com um portfólio interessantíssimo. Segundo o próprio autor, seu trabalho:

“(…) se concentra em tornar os recursos públicos, como coleções audiovisuais, conjuntos de dados científicos e objetos culturais mais acessíveis e remixáveis ​​para o público em geral. Costumo fazer isso por meio de visualização, sonificação, imersão e brincadeira. Adoto uma abordagem pública ao meu trabalho, onde documente abertamente minhas decisões criativas e técnicas, bem como compartilho minhas ferramentas, software e recursos para que outros copiem, ampliem e adaptem.(…)”

Sendo assim, se permita perder-se nesse universo de imaginação e quase sonho. Sei que não se arrependerá.
Visite cada uma delas e faça um paralelo com o texto de Calvino.

Perder-se em uma cidade, como dizia Walter Benjamin, é também uma forma de se achar! 
Destarte escolha, se for capaz, uma delas para chamar de sua.
Enquanto isso minha votação sobre a ilustração de cidade e talvez sua relação com o espaço que aqui partilhamos vai para a City #1: Fraboo (Brian F), Otávia, suspensa em teias sobre um abismo. É uma das chamadas Cidade Delgadas.
Conheça-a:

Otávia: a cidade teia de aranha

Nas palavras de Calvino: 

“Essa é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e sustentáculo. Todo o resto, em vez de se elevar, está pendurado para baixo: escadas de corda, redes, casas em forma de saco, varais, terraços com forma de navetas, odres de água (…) trapézios e anéis para jogos, teleféricos, lampadários (…)Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Otávia é menos incerta que a de outras cidades. Sabem que a rede não resistirá mais que isso.”

A ideia dessa cidade em rede onde seus fios tecem a garantia de que nunca ninguém saia dali ou que pise em terra firme pode ser uma metáfora interessante…

Seria Otávia a cidade onde toda a rede virtual que nos prende, enlaça e aninha se encontra? Seriamos nós habitantes de uma Otávia no ciberespaço?
E qual é cidade para chamar de sua?

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